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Memórias dos avós

Portais de Memórias

Neste verão de janeiro de 2019, decidi voltar ao lugar de minhas lembranças: o sítio do “Barro Preto”, Rio Grande do Norte, onde viviam meus avós, por parte materna.

Pela janela da Kombi velha que me levara por aquelas estradas de barro, em direção ao sítio, via os cajueiros, as majestosas mangueiras, as cabritas na beira das estradas.  O sol ardente e a poeira embaralhavam minha vista. Na estrada, via muitas porteiras. Porteiras que me levavam aos portais do passado. A cada porteira aberta, eu me aproximava mais e mais de minhas memórias e emoções. Tudo parecia estar no mesmo lugar, como os anos em que os visitara, na juventude, em minhas curtas férias da escola paulistana. 

Desci da Kombi, pus os pés naquele pedaço de chão, como se pisasse em terra sagrada. Lá estava a casa de meus avós, Raimunda e Luís da Cruz. As lembranças vieram, meus pés não se moviam por alguns instantes. Senti a presença de vô Luís, o cheiro forte do fumo do cachimbo. No alpendre da casa, o via sentado em sua cadeira de balanço, como se ele estivesse ali em pele e osso. Um homem de vida simples, de corpo franzino e pequeno. Na cabeça, usava um chapeuzinho de couro de boiadeiro. Vestia uma camisa azul clara e calçava alpargatas de couro cru.

Sempre quando me via chegar, com a mochila nas costas, vô Luís gritava para avó Raimundinha, como ele carinhosamente a chamava: “ponha água no feijão, que nossa menina chegou de longe”. Com um sorriso alargado, levantava-se e corria para me abraçar. E eu, entrelaçada em seus braços, me aconchegava. A felicidade não cabia em mim!

Dei alguns passos à frente. Do lado da casa, vi a mangueira carregada de mangas-rosa que vô Luís me levara sempre. Era como se fosse uma mãe parideira de frutos. De baixo do pé, o tempo parou. Às vezes, me trepava na mangueira e, debaixo dela, chupava e comia as mangas carnudas e suculentas, uma atrás da outra. O desejo, às vezes, era tão grande, que as mangas paravam na minha boca, vindas do próprio chão. Eu me lambuzava toda, como criança! Era algo tão mágico aquele momento, que nem dor de barriga dava. Crença que vovó, alertava!

Tomada por aquelas lembranças, fiquei ali abraçada com a velha Mangueira, como se tivesse abraçando vô Luís. E o som da voz de vovó Raimunda dizendo: “entre, minha neta, venha lavar as mãos. Tem água friazinha  na moringa de barro”. Conduzida pela voz mansa, fui adentrando na casa baixa, de taipa, como era as casas desta região. Senti as pernas tremerem e o coração palpitar, aceleradamente, pela emoção. Na sala, estavam as cadeiras de balanço onde eles passavam algumas horas da noite, descansando depois de um dia de labuta no roçado. Sobre um pequeno móvel, estava o sacramentado rádio de pilha, onde eles escutavam as notícias tristes e alegres do mundo – dos anos 1940, 1950, 1960 –, de vez em quando, interrompidas pela voz do rei do baião, Luiz Gonzaga, e outras vozes, com suas canções nordestinas. Do lado de fora, podia-se escutar o coaxar dos sapos e o som dos grilos da noite estrelada.

De um lado da parede descascada pelo tempo, via o altar com imagens de Padre Cícero, Jesus pregado na cruz, Nossa Senhora Aparecida e, sobre uma mesinha, a estátua do Preto velho. Via, dentro de uma cestinha, algumas ervas do mato, usadas para os banhos de acento e para fazer os chás milagrosos, algumas plantas de bendição. A santidade morava ali. Vovó era uma mulher da crença fervorosa. Todas as noites, antes de dormir, rezava o terço, pendurado na cabeceira da cama. Agradecimentos não faltavam, mas os pedidos aos santos eram ainda maiores: pedia a proteção para seus filhos e filhas espalhados pelas cidades metrópoles do sudeste; para a chegança das chuvas nos açudes; para uma boa safra do feijão, da mandioca, do inhame, os alimentos de cada dia dos agricultores brejeiros; para as comadres terem uma bom parto. E rezava, rezava, rezava as ladainhas, Ave Marias!

Olhei para outro lado da parede e vi o retrato de casamento de vô Luís com vó Raimunda. Casaram-se na adolescência. Da vida a dois, dos encontros dos corpos, de nada sabiam. Foram se desvelando. Sobre o assunto do corpo, não se podia falar, só das paridas das crianças nascidas, no quarto, pelas mãos das comadres-parteiras. Ao lado do retrato de casamento,  estava um  retrato com os dez filhos e filhas, quando viviam naquela casa. Quando adultos, foram forçados a migrarem para as cidades metrópoles, como tantos outros agricultores da região, em busca de melhorias de vida. Tinham outras fomes! Vovó de vez enquanto recebia uma carta de uma filha ou filho, com a promessa de um dia regressarem para a terrinha. Um dia vó Raimunda leu uma carta de sua filha mais velha, que morava no Rio de Janeiro:

Rio de Janeiro, 03 de março de 1975

 

Benção mãe, benção pai!

Estou escrevendo essas linhas para dar notícias de nós e ao mesmo tempo saber das suas.

Aqui estamos todos bem de saúde.

A cidade é muito bonita. As crianças estão na escola, o Francisco trabalha como pedreiro.

Não ganha muito dinheiro, mas dá para a gente levar a vida. Comida não falta. A roupa e calçados ninguém passa vexame. Até sobra um dinheirinho para ir à praia nos dias de sol.

E com parte do dinheiro que ganho limpando a casa das mulheres ricas, estou juntando para visitar vocês, no próximo ano.

 (…)

Termino por aqui, com muitas saudades!

Que Deus abençoe vocês!

Sua filha,

Maria.

Vovó leu a carta guardada com os olhos molhados de saudades, gotas que caiam sobre a folha de palavras, cheias de promessa. Sentiam falta da presença deles. Passaram-se anos para que a promessa da filha Maria e de outros filhos se realizasse. Poucos filhos regressaram para vê-los em vida!

Naquele pedaço de chão da sala, lugar do aconchego, estavam os lampiões a gás, a máquina de costura de pedal de vovó, onde ela costurava as roupas (das bonecas) para suas meninas, coisa que aprendera com as matriarcas da família. Cada lugar, móveis, tinha um quê de meus avós. Os velhos sofás, onde as visitas se sentavam para contar suas prosas, também permaneciam no mesmo lugar. Tudo parecia ter vida, tudo estava lá.

À luz dos candeeiros, vô Luís contava algumas histórias que escutara de seus pais, do povo da roça, que costumava se encontrar nas feiras de sábado, na “Rua” (as cidades), ou nas noites de novenas, que aconteciam nas casas. Eram tão fascinantes as histórias que eu nem sentia falta da televisão. Isto só acontecia, claro, depois de escutar as notícias no rádio, um ritual que presenciei todos os meus trinta dias de férias, ao lado deles. Uma vez, a pilha do rádio acabou e o silêncio foi interrompido com mais histórias relembradas por ele, às vezes, intercaladas pelas histórias rememoradas por vó Raimunda, que era de pouca conversa, mas, quando falava… era como uma musicalidade para meus ouvidos. Uma mulher de fala mansa e minuciosa.

Dirigi-me até a cozinha. Senti o cheiro forte de fogo à lenha. Sobre o fogão, vi as panelas de barro, o bule de café, o coador de pano, as colheres de pau, os velhos pratos de porcelanas descascados. E, sobre um tamborete, o filtro de barro, com suas jarrinhas, que residiam no mesmo lugar. Vovó buscava água no açude distante de sua casa. A água era trazida em potes sobre o jumento ou carregada em latas, sobre a cabeça: “lata d’água na cabeça, lá vai Maria”!

De repente, senti o cheiro da comida de vovó, do feijão verde feito com jerimum, maxixe e coentro; a galinha caipira cozida na panela de barro. Minha boca se encheu de água. A comida de vó era a melhor do mundo. Ainda sinto os sabores daquelas comidas feitas com gosto e simplicidade. Tudo era tirado do roçado! As galinhas, os perus se criavam no quintal.

Movi-me até o quarto dos meus amados avós. Na parede, via um grande rosário. Lá estava uma cama pequena de casal e sobre ela vi a camisolinha de algodão e os mosquiteiros de vovó. Fiquei ali, por alguns instantes, sentindo a presença viva dela. De um lado da cama, sobre o criado mudo de vovô, estava seu remédio contra a doença do vermelhão, que atacara uma de suas pernas na velhice. Do outro, sobre o criado mudo de vovó, estavam o livro sagrado, o terço da reza de todas as noites, o talco, o pó de arroz e o frasco de perfume de lavanda. Ainda podia sentir aquele cheiro pelo quarto todo. Adorava usar um talco antes de dormir ao lado do magrelo vô Luís. Tudo estava lá!

Uma noite, no quarto de vó Raimunda, naquela intimidade entre avó e neta, ela me falou de sua vida de menina-adolescente. Contara como quem tivesse se transportando para outro lugar, com um olhar perdido, para um tempo longínquo, entranhado em suas frágeis memórias. Lembrara que entre cinco e sete anos, ganhara uma boneca de pano (chita), costurada à mão por sua mãe Bertulina da Cruz, que guardara por toda a vida. 

Saindo dos portais de minhas memórias, não pude conter as lágrimas. E, sem perceber o tempo passar, fincada ali por horas, dei me conta que já era quase final da tarde, quando as lembranças foram interrompidas pelo som da buzina da Kombi. Era hora de voltar. Pela última vez, percebi que nem tudo estava mais lá. Eram as memórias vivas dentro de mim. Segui a estrada de volta para casa, saudosa de meus queridos avós, que partiram para outro universo, nos anos 90 e, devido à distância, filhas e filhos, que um dia partiram dali, não puderam regressar para dizer adeus.

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