Terra Literaria

À minha querida bela e ferida Veneza

Era um lindo final de semana de outubro de 2018, quando te conheci Veneza, bela entre todas as cidades da Itália. Com minha mochila nas costas, caminhei pelos becos, labirintos e praças de tuas ruas, admirando tua bela arquitetura. Estava feliz por te conhecer! Ouvia falar de ti por amigos que haviam te visitado, pelas fotos em revistas, novelas e filmes que te protagonizavam como majestosa, como a ilha dos amantes, da arte, da literatura,  do cinema, das máscaras de carnaval mais belas que já vi em toda minha vida.

No trajeto para o hotel, Rialto, onde me hospedei por três dias, a cada passo que dava, sentia uma tremenda emoção. Ah, como era lindo ver as casas com suas varandas cheias de flores arrodeadas pelas águas, cruzar as pequenas pontes de cada beco, me deparar com os velhos casebres, a Praça São Marcos… tantos lugares carregados de histórias, memórias.

Da janela do quarto pequeno e antigo do hotel, me maravilhava com a paisagem bela e ferida de ti, que meus olhos podiam alcançar.

Sobre o Grande Canal, de águas amarronzadas, via barcos que navegavam lotados de turistas, que perambulavam por todos os cantos, carregando suas malas, suas máquinas fotográficas. A cada passo era um flash: casais de noivos, modelos, gente comum… Todos te queriam como o cenário de suas felicidades. Via barcos adentrarem pela cidade urbana, levando pessoas e mercadorias para os hotéis, restaurantes, enfim, para todo o comércio. Via o barco-ambulância e o barco-polícia passarem por tuas águas.

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Entre as águas trafegadas, disputavam um lugar as atrativas gôndolas conduzidas por homens usando os trajes de ti. Via as gôndolas navegando pelos labirintos com os amantes, famílias ou mesmo os solitários dentro delas fazendo inúmeras selfies. Para romantizar aquele momento, condutores, quase todos homens, entoavam um canto, outros apresentavam os pontos turísticos de tua casa. Era um movimento intenso, quase sem pausa. As águas não descansavam. Os barulhos dos motores se misturavam às vozes humanas que por ali passavam. Debaixo daquelas águas certamente não havia vida, apenas o óleo deixado pelos barcos.

Na Ponte di Rialto, pairavam incessantemente milhares de turistas oriundos de todos os continentes. Uma invasão humana tomava conta da cidade-ilha. Os navios-monstros, os cruzeiros, desembarcavam no Grande Canal e seus viajantes se apoderavam de tuas ruas, de tudo que é teu. Teu corpo-chão-água estava sendo usurpado pela multidão estrangeira. Teu corpo-chão-água estava sendo explorado à máxima potência da economia.

Os resistentes moradores nativos denunciavam tua exploração e clamavam por tua proteção. Denunciavam os impactos sobre as calçadas de tuas ruas sofridas pelos aportes dos monstros-navios; da falta de privacidade do teu povo; da expulsão dos moradores do mar – os peixes, os golfinhos – de seu habitat natural, de tuas águas.

No entardecer, tua beleza era irradiada pela luz do sol, corpos se exprimiam sobre a Ponte di Rialto para te fotografar. Um espetáculo de se ver os raios do sol sobre tuas águas! E, quando a noite chegava, a multidão se espalhava pelos becos da gastronomia, para comprar e comprar. Era neste momento que eu aproveitava para te contemplar, tentando encontrar o teu silêncio, desejosa por tua tranquilidade e por tua magia.

Bela Veneza, passaram-se dois anos que me despedi de ti. Neste tempo de Covid 19, quando te vejo através de telas, tens outra fotografia. Os turistas desapareceram, já não há mais os navios-monstros. A vida parece se normalizar ainda que alguns comerciantes sintam o impacto da ausência da multidão turista  na economia local.

Bela Veneza, a vida cotidiana de seus moradores nativos já não é mais a mesma. As ruas estão silenciosas, os nativos sentem-se novamente em casa e agora me pergunto: será que os moradores do mar, os golfinhos, voltarão um dia para habitar  novamente tuas águas?

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