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Uma carta pra não esquecer

Rio de Janeiro, 20 de setembro de 2020.

Querida Malu,

Esqueci como era escrever para alguém, em seis meses só escrevi o que tivesse como destino as gavetas ou caixas empoeiradas da estante. E textos de trabalho. E a maior parte do que escrevo sequer chega a virar folha de papel mesmo, branco. A maioria dos textos ficam presos às telas, à formatação irregular dos sites e das redes sociais. Quase não se fala mais em Pandemia nos projetos de lei que monitoro no Parlamento, como acontecia há seis meses. Nós é que ainda falamos dela, fazemos questão de lembrar. Quando me formei em Ciência Política, tinha mais esperança quanto à destinação das ideias políticas, hoje só penso em como as leis tornam o país mais desigual.

Temos lutado muitíssimo por aqui, pelos direitos que nunca tivemos, pelos poucos que conquistamos e pelos que se travestem de coisas boas. Esse trabalho árduo nos consome, você deve imaginar muito bem. É difícil explicar em outro país que nesta terra tudo se vende, antes mesmo do arroz chegar às mesas. Que a violência, de tão banal, adormece a mudança.

São tantas as urgências, todos os dias, que sinto falta de permanecer, de dar atenção exclusiva a uma única coisa, de observar meu medo para dele extrair algo. Passo tanto tempo entre telas que sequer pisco, às vezes esqueço de ir buscar água no filtro, da hora que o Gato gosta de comer. Sequer me habituo à novidade da manhã e uma frase presidencial me atinge em cheio.

Não deixo de pensar em uma coisa que o Vitor me disse, de que o esquecimento é um método genocida. Que nos fazer esquecer nossas histórias era uma estratégia da ditadura, mas não só, é o que acontece desde que éramos colônia. É absurdo, mas vou dizer em espanhol que o Brasil nem gosta de se entender como América Latina. Sabemos mais de Londres do que da Bolívia, por exemplo.

Numa tentativa desesperada de não esquecer, de lembrar, me apeguei a um álbum de fotos da mãe do Vitor. Centenas de fotos. Passei com ele um bom tempo identificando os momentos da vida dela, da família, das mudanças que ela testemunhou com sua câmera de filme. Ainda reviramos cadernos, bilhetes, diários. O que nos deu a esperança de um dia organizar tudo, enviar algumas para as pessoas, conversar com outras assim que for possível. Um dia te mando algumas fotos e te conto histórias, em outra carta.

Organizo essas e fotos de viagem à noite, quando deixo de lado a enxurrada de trabalho. Também é quando escrevo às margens da minha agenda os planos, o que não posso deixar passar. Outro dia escrevi poemas à meia luz, quando as palavras me acordaram do sonho. Eram parte de um exercício que fiz para um curso de poesia sobre poetas brasileiras contemporâneas. 

Às vezes também invento as histórias que imagino estarem por trás do registro. E reli livros, o que nunca tinha feito. O último que eu li foi o livro novo da Ferrante, “A vida mentirosa dos adultos”, que me levou a reler o “Frantumaglia”. É um livro que reúne cartas, entrevistas e outros texto da autora.

Minha mãe me deu uma palavra em dialeto que ela usava para descrever sensações contraditórias que a consumiam. Ela dizia ter dentro dela fiapos e pedaços de sentimentos, uma frantumaglia. A frantumaglia a deprimia. Às vezes fazia com que esquecesse o forno ligado, fazia com que se sentisse tonta, com náusea e trazia uma gosto de metal na boca. É uma palavra indefinida, indefinível. Refere-se a uma confusão de coisas aglomeradas na sua mente, uma sujeira e o lixo de águas barrentas na sua cabeça. A frantumaglia provocava reações misteriosas. Ela acordava minha mãe no meio da noite, fazia com que falasse sozinha, queimasse a comida. A frantumaglia deixava minha mãe envergonhada, fazia com que chorasse. Desde pequena essa palavra ficou comigo quando eu queria descrever um ímpeto emocional que me fizesse chorar aparentemente sem razão. Eram as lágrimas de frantumaglia (Elena Ferrante).

Quando você me perguntou se eu ainda escrevia cartas, eu demorei, acho que tinha mesmo perdido o costume. Tinha esquecido que as cartas são uma forma de abraço. Ainda bem que você me lembrou. Às margens dos informes políticos, das agendas, escrevo sim. Escrevo para continuar lembrando. 

E você, como está Malu? Me manda notícias!

Priscilla Brito

 

Priscilla Brito

 
É escritora e assessora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria – CFEMEA, organização feminista brasileira que atua na luta pelos direitos das mulheres.

Publica seus textos literários em: https://medium.com/@priscillacbrito
 
 
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