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Território, corpo e espírito: o bem viver dos povos indígenas

Desde bem cedo que carrego dentro de mim este desejo de saber mais sobre os povos indígenas originários do Brasil e da América Latina, especialmente por causa da minha convivência com uma comunidade indígena (guaranis), em São Paulo. Na infância, costumava brincar com as crianças indígenas e comer com elas em sua casa, convivendo um pouco com sua cultura. Mais tarde, conheci as mulheres aymaras, de Bolívia e Peru, através das Escuelas de Espiritualidad, em Santiago do Chile. Nestes encontros, participei dos rituais à Mãe Terra realizados pelas mulheres aymaras, que compartilhavam sua sabedoria, cultura e suas resistências na preservação do Bem Viver dos povos andinos.

Por meio da Cunhã Coletivo Feminista e Rede de Mulheres da Paraíba, tive a oportunidade de trabalhar com as mulheres indígenas potiguaras da aldeia São Francisco, Baia da Traição: comí o peixe pescado por elas, o beju feito na palha da bananeira, dancei o toré,  ouví a histórias contadas pelas mulheres indígenas sobre suas antepassados. Tomei consciência do quanto os povos indígenas em todo o Brasil, especialmente as mulheres, são extremamente violados em sua cultura, língua, tradições… Essas lembranças, vivências trago comigo até hoje,  principalmente por me identificar com a resistência contra a exploração, a colonização e o extermínio, que tiveram início a partir do contato com os europeus.

A partir deste lugar, busco ou me deparo com narrativas que falem desse processo. Recentemente, li o romance Am Ende des Regenwaldes (a tradução para o português é No fim da floresta tropical), da escritora Marion Achard[1] (2017), traduzido para o alemão por Anna Taube, contendo 18 capítulos e publicado pela editora Magellan, em 2019. Você pode ouvir o nosso primeiro Podcast a respeito deste tema.

O romance foi inspirado e baseado em fatos reais do massacre dos povos indígenas, recentemente ocorrido na floresta do Equador, cujo registro consta nos relatórios de ativistas, pesquisadores e defensores da vida e dos direitos dos povos da floresta desta região.

No decorrer do texto, nos deparamos com temáticas como território indígena, corpo e espírito, violência, exploração capitalista, com o extermínio dos povos indígenas e esgotamento dos recursos naturais. As vozes da narradora e das personagens indígenas são de denúncia e de resistência aos sistemas colonialista e capitalista.

As dimensões do corpo e espírito na perspectiva dos povos indígenas são integradas. A vida dos povos indígenas em seus territórios é baseada no princípio do “bem viver”, como poderemos perceber através das vozes das(os) personagens no decorrer do romance. Segundo a bióloga equatoriana Esperanza Martinez[2], o sentido do “bem viver” dos povos indígenas andinos – presente tanto nos Aimarás (Bolívia) quanto nos Quéchua (Bolívia e Equador) – e também dos povos Guarani (Brasil e Paraguai), é uma concepção de vida. Na língua dos Aimarás e Quéchua o bem viver é entendido como suma quamaña. Para os Guaranis, o bem viver em seu idioma, é compreendido como Teko Porã. Para os indígenas, “o Bem Viver ou o viver bem é viver bem em plenitude”, conforme afirma Martinez. Na língua indígena do Equador, o termo utilizado é “sumak (plenitude) kawsay (viver)”. Na visão da bióloga, a perspectiva do bem viver centra-se em dois pontos importantes: o “sentido de pertença à natureza e o sentido de comunidade”.

A vida dos povos indígenas está integrada com a natureza e com os espíritos. Eles têm um profundo conhecimento dos ciclos da natureza. Vemos isto, logo no primeiro capítulo do livro, quando a voz da narradora-protagonista indígena inicia a história dizendo “Eu sou Daboka!”, cujo nome pode significar uma voz que não se cala diante da opressão do seu povo, que  denuncia, resiste e luta para manter a identidade e raízes do seu povo. Sua força emana do lugar de origem de sua ancestralidade. Sua referência identitária é a floresta, onde ela convive com todos os outros seres vivos e não vivos.

Eu vivo na barriga da Floresta Tropical,  onde as árvores são tão altas, que os raios do sol não penetram no teto das folhas, onde os cipós mergulham no coração da Terra, onde os insetos, os macacos, as cobras e muitos pássaros, se movimentam, cheios de vida, e se divertem como gente (cap. 1).[3]

Para os povos indígenas andinos, a natureza é a Mãe Terra, a Pachamama, o habitat natural de todos os seres que nela vivem. A dimensão da cosmovisão indígena sobre  a vida e a natureza é descrita pela narradora ao se referir sobre as transformações da floresta, que ocorrem com as mudanças das estações do ano: tradições, costumes, ritos e convivência com os animais, insetos, os pássaros, rios, as cachoeiras, o sol, as chuvas, a lua, as estrelas. Os espíritos de suas ancestralidades estão presentes na floresta e são cultuados em seus ritos. A concepção é de que todos nós pertencemos à natureza, somos parte dela e dela dependemos!

No meio da Floresta Tropical, o povo Maloké vivia em um acampamento rodeado pelas imensas árvores que os protegiam do sol ardente, das tempestades e da umidade do chão, formado por um tapete feito de folhas.  Neste lugar, todos se preparavam para partir rumo ao outro lado da Floresta para visitar e festejar os parentes.

As mulheres jovens colocam a madeira sobre o fogo,  sufocando-o com as folhas secas frescas para impedir que a chama cresça. Na densa fumaça tem uma capivara seca. Akara monitora durante todo o dia, até que seja defumada e nós possamos levá-la conosco. Minha mãe, Kuna, prepara uma grande panela de barro para levar a comida. Do lado dela, Assipi se senta e mistura as cores para a pintura (cap. 1).

O rito de preparação segue na beira do fogo. As mulheres murmuram histórias de seus antepassados. As meninas Daboka e Loca cantam suas canções, atraindo as mulheres para perto delas, formando assim um coro feminino.

Na cosmovisão indígena, corporeidade e espírito estão integrados com o sagrado. Antes da partida do acampamento, as mulheres fazem um ritual de proteção com as meninas Daboka e Loca. A mãe, Akara, pinta seus corpos com a participação das outras mulheres da tribo. O ritual acontece nas águas do rio, como descreve Daboka:

Eu fico com águas até os joelhos, esfrego com areia e ervas de velhas cores puras no corpo. Loca se agacha sobre uma pedra e deixa-me a colorir. Ela se contorce debaixo dos ramos de pena, que a picam. (…) Eu puxo Loca para cima da pedra e sento-me ao lado dela. Minha mãe esfrega meu corpo com uma cor branca, depois ela desenha com um ramo fino uma figura geométrica. Assipi aparece e pinta de vermelho uma linha ondulada sobre minha barriga. Com uma mão habilidosa surge um animal das águas profundas. Ela desenha um espiral de Anacondas em meu braço. Para terminar ela coloca uma fabulosa linha sobre meu rosto, de uma orelha a outra, na frente da testa, sobre minhas bochechas, sobre meu queixo. Em um instante os desenhos estão quase invisíveis, mas amanhã a minha pele irá de novo, por muitos dias, brilhar em cores vigorosas (cap. 1).

As figuras desenhadas na barriga e no baço de Daboka, simbolicamente podem representar elementos de proteção espiritual ancestral, de astúcia, de coragem, como se as mulheres pressentissem que algo de ruim estava para acontecer. As meninas também fazem seus próprios rituais de embelezamento para a festa junto aos parentes.

Colocamos nossas bijuterias bonitas. Eu uso minha pulseira vermelha de sementes pretas. Loca amarra no seu pescoço um colar de dentes de macaco e faz uma trança em seus cabelos e usa uma tira de couro com penas amarelas de tucano. As linhas pretas feitas com o suco de jenipapo agora brilham sobre o seu rosto (cap. 1).

As mulheres estão prontas para a partida: enrolam a capivara defumada em folhas de palmas, colocando-a em uma grande cesta de palha. Sobre a testa penduram as alças da cesta carregando-a sobre a coluna, que será transportada durante todo caminho. Todos caminham pela floresta com seus corpos nus e descalços. Corpos livres e integrados com a natureza! No percurso da viagem, a protagonista descreve as heranças deixadas pelos seus antepassados:

Os pés dos meus antepassados deixaram pistas e o cheiro deles que ainda exalam nas plantas. Ao longo do caminho os arbustos que eles plantaram, cresceram, sementes semeadas por eles, brotaram. A exuberante floresta verde dá tudo para nós, o que precisamos: frutas para comermos, medicina contra doenças e ervas para afastar os mosquitos (cap. 1).

A convivência dos povos indígenas com a floresta segue os princípios do “Bem Viver”, baseados no cuidado e no respeito a toda a natureza. Eles vivem do que a terra, a floresta oferece para a manutenção da vida e, por isto, têm um profundo respeito pela natureza e dela cuidam para que as gerações futuras possam desfrutar de suas belezas, alimentos, de sua abundância. Sem as florestas não há vida, pois dela dependemos para respirar, para nos alimentar, para manter saudável todo o planeta.

[1] O romance foi escrito originalmente em francês, com o título “Le peuple du Chemin”, e publicado em 2017 pela Revista XXI, na França.

[2] Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/3448-esperanza-martinez. Acesso em: 26 fev. 2020.

[3] Fiz uma tradução livre de alguns trechos do livro do alemão para o português.

 

Foto: Luis Miguel Modino

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