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Soledade e Minervina – poesia, viola e cantoria

Feminista, poeta-cordelista, violeira e  repentista, Maria da Soledade Leite nasceu em 1942, no sítio Genipapo, no município de Alagoa Grande, na região do Brejo paraibano. Filha de agricultores, criou-se e passou a juventude no sítio junto com seus pais. 

A força que brota desta mulher faz parte da sua trajetória de vida. Aos 81 anos, a poeta popular Soledade tem muitas histórias para nos contar. Uma mulher simples e de coragem. É mãe de sete filhas e um filho,  dos quais apenas três filhas sobreviveram, sendo Nelma falecida na vida adulta. É avó de quatro netas e um neto, e bisa de três meninas e um menino.

Desde a infância, enfrentou os desafios impostos pela classe social e pelas desigualdades de gênero. Na área rural, estudou até a quarta série primária (equivalente ao Ensino fundamental I) em uma escola que ficava distante do sítio onde morava. Aos oito anos, já mostrava interesse pela arte cordelista. Menina atrevida, um dia foi desafiada por um vizinho que propôs que, se ela cantasse um folheto sem gaguejar, ganharia dele 10 mil réis, sendo a quantia dobrada por outro senhor. Com o talento artístico aflorado, ela respondeu ao desafio e cantou diante da comunidade e da família a história escolhida.

Trabalhou na agricultura, em atividades produtivas na roça e nos afazeres domésticos, como ela mesma relata: “foi assim que me criei, lavando roupa, passando roupa, limpando roça, cavando terra, apanhando feijão, quebrando milho, a luta cotidiana, até que me destinei trocar tudo isso pela viola”. 

Para Soledade, não foi fácil, como mulher, seguir o caminho de artista, pois tinha que lidar com o machismo da família e da sociedade, que entendiam que “viola não era coisa pra mulher”. Naquela  época, na cultura nordestina, a viola e o repente eram vistos como arte do gênero masculino. Apenas os homens podiam tocar viola nos eventos e eram reconhecidos como violeiros ou repentistas. O lugar da mulher estava limitado ao espaço da casa e do privado.

Rebeldia, liberdade e a parceria com Minervina Ferreira

Foi aos dezenove anos, conservando a mesma paixão pelos repentes, que ela assumiu a profissão de cantadora. Rebelou-se contra a vontade de seus pais e o preconceito da família e da comunidade, foi atrás de realizar o seu sonho.

Trilhar o caminho da cantoria não foi fácil, mas com seu talento e teimosia, aos poucos, Soledade foi superando os obstáculos. Encontrou em Minervina Ferreira sua parelha dos palcos. Pedagoga e repentista, esta talentosa violeira de Cuité (PB) era filha de parteira e rezadeira, mas a música também corria nas veias de sua família: Minervina era irmã de violeiro.

A parceria com Minervina Ferreira (in memoriam) durou mais de trinta anos. Com a viola e a literatura de cordel, participaram de festivais de repentistas, deixaram a força e a marca da voz feminina, afirmando que mulher também é boa na arte do repente. Foram premiadas, reconhecidas e respeitadas. Juntaram-se a outras repentistas, inspirando muitas mulheres artistas a perseguirem seus sonhos. 

Nos anos de 1980, aconteceram diversos encontros de mulheres cantadoras. “Não deixávamos os homens competir, [participavam] apenas como convidados. Por isso, diziam que eram encontros feministas”, lembra Soledade.

Maria da Soledade gravou quatro CDs: Mulheres no repente – volumes I e II, e As vozes que se misturam –  volumes I e II, estes gravados com os poetas Santino Luiz, Agamenon Santos e a poetisa Minervina Ferreira. Publicou o livro Soledade: uma antologia (Editora Arribaçã) com cinco de seus inúmeros cordéis: O período da adolescência; Por que Lula na Prisão; A namorada de Jackson; O milagre de Santo Antonio; Dois corações e um segredo. 

Por onde passavam, as repentistas eram bastante aplaudidas e elogiadas e tornaram-se referência das poetisas do Nordeste do Brasil. Mas, para tristeza de muita gente, aos 76 anos de idade, em 28 de abril de 2023, Minervina Ferreira disse adeus à cultura brasileira e encantou-se. A amiga Soledade e diversos/as violeiros/as choram a partida desta grandiosa mulher repentista. Mas o choro foi acalentado no evento “Na noite de poesia, em homenagem a Minervina Ferreira”, organizado por Bibiu do Jatobá e Maria da Soledade, em Alagoa Grande, PB, no dia 17 de fevereiro de 2024.

A partida da amiga e parceira de viola e do repente deixou um enorme vazio na vida de Soledade, como ela mesmo relata: “perdi a outra metade da viola”. E enfatiza: “irei seguir com o legado do repente, levando para todos os cantos, porque nossa história é exemplo principalmente para a nova geração”.

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A vida artística e o feminismo

O compromisso político e o engajamento nas lutas sociais estão entranhados na vida de Soledade, tendo na viola e na poesia intrumentos de rebeldia e de transformação. Era uma trabalhadora rural sindicalizada desde os anos 1970. Na década seguinte, passou a atuarno movimento de mulheres e feminista junto às trabalhadoras rurais do Nordeste. Participou da fundação do Movimento de Mulheres do Brejo (MMB) da Paraíba e chegou a integrar a coordenação do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR)  do Nordeste e a coordenação nacional do Movimento de Movimento de Mulheres Campesinas (MMC).

Junto com Margarida Maria Alves e Maria da Penha do Nascimento, Soledade lutou pela Reforma Agrária e pelos direitos das mulheres trabalhadora rurais e, após o assassinato de Margarida, assumiu a presidência do Sindicato Rural de Alagoa Grande. Com sua viola afinada e os versos afiados, ela fez resistência frente aos latifundiários e desafiou o patriarcado impregnado na cultura da Paraíba.

Lembro-me que conheci Soledade, na Cunhã Coletivo Feminista, em João Pessoa, uma poeta que cordelizava sobre a situação das mulheres, tocando uma viola. Até então, não sabia que mulheres também faziam (fazem) repentes e emboladas. E em uma atividade do 8 de março, Dia Internacional da Mulher, organizada pelo Movimento de Mulheres, Soledade e Minervina Ferreira subiram ao palco da mobilização de rua com suas violas.  A Cunhã contou muitas vezes com a parceria dessas brilhantes violeiras nas atividades feministas.

No XIII Encontro Nacional Feminista (2000), em João Pessoa, ou em outras atividades, as violeiras ganhavam mais e mais visibilidade. Era lindo de se ver e de ouvir estas duas talentosas mulheres rasgarem suas vozes, denuciando as injustiças sociais, as desigualdades e a violência contra as mulheres, a destruição da natureza… Seus poemas expressam as dificuldades e necessidades cotidianas da vida das mulheres e da realidade do passado e do presente.

Em suas escritas poéticas, Soledade encoraja as mulheres para conquistarem sua liberdade, autonomia, a ter voz e elevar a autoestima: “Vem companheira, a vida é tão bela, ele não é seu dono, é apenas seu companheiro, você merece respeito”. Ela as convida a abrirem os olhos para a vida, lutarem pelos seus direitos e conquistarem sua felicidade: “Coragem, mulher”, impulsiona Soledade. Em outros poemas, ela também chama atenção da sociedade e dos governantes para as mudanças fundamentais a serem feitas para o Bem Viver da população e da Natureza.

Apesar de chegar à maturidade com algumas fragilidades de saúde, Soledade não se aposentou da viola e do repente. Pelo contrário, ainda depende de cachês para complementar sua renda e garantir a sobrevivência. Segue produzindo seus cordéis e fazendo cantorias em eventos da agenda dos movimentos sociais e nos festivais musicais e culturais. 

O verso improvisado ao som da viola

O poeta cantador
Ainda sente nostalgia
Porque nossa cantoria
Não tem um total valor
O mundo superior
Não sabe o que é repente
Se ficar na nossa frente
Não liga nossa cultura
Precisamos cobertura
Pra esta arte da gente
Vivemos de improviso
Cantando ao som da viola
Feita de madeira e cola (…)

Os domínios do machismo

Sou mulher não me canso de lutar
Na defesa da minha integridade
Vida ampla, sossego e liberdade
Para homem nenhum me escravizar.

Se o cara tentar me machucar
Machucado ele vai ficar também
Se bater, o direito o peste tem
A pancada que eu der será
perfeita.

A mulher feminista não aceita
os domínios machistas de
ninguém.

Não nasci pra ser escravizada
No domínio de cabra sem futuro
Que seja um ricaço ou seja duro
Sendo ruim para mim
Não vale nada.

Sou mulher
Tenho marca registrada
Canto brinco palestro
bem
Não baixo cabeça pra quem
Não deseja me ver  bem
satisfeita.

A mulher feminista não aceita
Os domínios machistas de ninguém.

Quer respeito procure
respeitar
Se desejas sentir felicidade.

Também quero viver com liberdade
Desaforo cruel eu não
aceito
Sou a dona respondo cada
feito.

Não retiro o direito de
quem tem mais
Não dou o meu direito
também
Esse é fato ninguém  não lhe 
rejeita.

A mulher feminista não aceita
os domínios machistas de
ninguém.

Escrava do próprio lar

Me revolto quando vejo
A mulher escravizada
Dentro do seu próprio lar
De dia à noite explorada
Por um marido machista
Que lhe tem como empregada

Acorda de madrugada
Para cuidar do bebê
O peste fica na cama
A pobre fica de pé
Depois que o filho dorme
Vai preparar o café

Mulher desse jeito é
A escrava da cozinha
Engoma lava costura

Dá banho na criancinha
Vai dormir tarde da noite
Acorda de manhãzinha

Vai buscar lenha sozinha
Bota água pra beber
Faz a comida na hora
Para não aborrecer
Só vota no candidato
Que o marido escolher

Sofre sem poder fazer
Nenhuma reclamação
Não entra no sindicato
Pois o marido machão
Não deixa que ela assista
Nenhuma reunião

Em uma associação
Não pode se associar
Só fala com os vizinhos
Se o marido deixar
Nem com ele nem sozinha
Tem direito de passear

Não vai a baile de latada
Novena missa ou leilão
É do roçado pra casa
Da sala para o fogão
O marido ditador
Ainda lhe prega sermão

(…)

É escrava do amor
Da vida perde o sentido
A casa vira senzala
O peito solta gemido
Se torna escrava dos filhos
E muito mais do marido

Poema matuto

Seu Dr., Hoje a mué
ja sabe se defender
Poquinho dagora pra frente
Ninguém vai mais nos
prender
Nem político
Nem patrão
E a marido machão
Ninguém vai obedecer

Nós muito acostumada
Cortar lenha, arrancar toco
Limpar mato de enxada

Tapar reboco
Viver sujeita num eito
obedecendo um sujeito
que explora e paga pouco

A gente tava perdida
Trabalhando sem salário
Com medo, toda inibida
Olhando o propietário
Isso tudo só mudou quando
a mué começou assistindo
o seminário

Mué agora Dr.
Tem curso de formação
Aprendeu se dar valor
Em vez de si, dizer não
ela pode trabalhar
escolher com quem
votar no tempo da eleição

Mué agora Dr já
sabe o que ela quer
Do Brasil ao exterior
pra o que der e vier
Pisa maneiro e sutil
Que o Brasil só é Brasil
dando o direito a mulher.

Mué agora Dr.
Tem mais força no tutano
Aprendeu se dar valor
Não obedece tirano
Quem achar ruim se ajeite
Ou compre vaca de leite
Pra ter fio todo ano.

Sobre sexualidade ninguém
podia falar
Progue a sociedade podia
nos censurar
Só nisso a mué pensava
quanto tempo fomos escrava
com medo de nos tocar

Mas agora seu Dr.
Eu faço tudo que quero
Aprendi me ter amor
Violência não tolero
Sou mulher
Sou repentista
Sou bruxa
Sou feminista
Ser bem muito, mais espero.

Mãe Natureza chora

Todos os seres homanos são culpados
Dos destroços que estão acontecendo
Mas Deus lá do Céu tudo está vendo
Esses atos mal-feitos praticados
Os seus rios estão danificados
Cachoeiras ficando na sequela
Cada uma floresta que foi bela
O homem malvado está queimando

Nossa Mãe Natureza está cobrando
Tudo quanto foi destruído dela

Os rios, riachos e vertentes
Vem o rico malvado destruindo
Faz barragem, destrói e sai sorrindo
Sem olhar para os pobres tão carentes
Vão matando de fome os inocentes
Nem um peixe se ver na fonte bela
A pobreza gritando na favela
Os ricos em palácios gargalhando

Nossa Mãe Natureza está cobrando
Tudo quanto foi destruído dela

Minha Eterna Companheira

Criança, jovem e mulher.
Artista e simpatizante
Tomei gosto pela luta
Achando ser importante
Abraçei essas bandeiras
Não me arrependo
Um instante

Na luta fui militante
No Sindicato guerreira
Na Arte sou repentista
Cordelista e violeira
A viola é minha arma
Minha fiel companheira

Subi e desci ladeira
Com a viola abraçada
Pasava a noite cantando
Findava na alvorada
Estou com 80 anos
Inda não estou cansada

A minha viola amada
Não tem a cor amarela
Não é viola do ano
Mais pra mim é a mais bela
Deito ela no meu colo
E canto no braço dela

Essa viola é aquela
Que faz parte do meu eu
Que ninguém venda nem troque
Esse velho pinho meu
Por morte minha viola, irá ficar no museu

É esse o desejo meu
À minha última vontade
Se netos e nem bisnetos
Pra arte sentir vontade
O Museu ganha a viola
De Maria Soledade

Fonte de imagens: arquivos pessoais de fotos de Maria da Soledade Leite e Soraia Jordão.

Fontes de pesquisas: informações cedidas por Maria da Soledade Leite e recolhida do livro Maria Soledade Leite – Nossa História em Poesias, organizado por Maria Ignes Novaes Ayala e Josélio Paulo Macário de Oliveira (2016); site: https://www.polemicaparaiba.com.br/entretenimento/minervina-ferreira-a-cultura-paraibana-chora-a-morte-da-grande-violeira-repentista/

 

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