O pinga-pinga da pia me irritava profundamente. Acordei no meio da noite com o barulho me azucrinando o juízo. Pin… pin… pin… “Acho que só eu sei fechar essa torneira.”
A gente dormia ao lado da cozinha. Era só levantar, cruzar o quarto até a porta, com cuidado para não acordar meus irmãos, girar a maçaneta devagar e puxar com firmeza. A porta sempre emperrava – falta de lixa, meu avô dizia – e sempre fazia um barulho esquisito para abrir, ainda mais naquele silêncio… Mas a preguiça de fazer este movimento todo era grande. E tinha o frio também, que não me encorajava a colocar os pés no chão.
“Então, fecha os olhos e volta a dormir”, eu dizia para mim mesma, me virando mais uma vez na cama.
Pin… pin… pin…
Pin… pin… pin…
A água devia estar pingando em uma panela bem gordurosa que minha mãe com certeza encheu de água antes de se deitar, deixando de presente para eu lavar assim que acordasse pela manhã, antes de ir para o colégio. Eu detestava lavar panela engordurada com todas as minhas forças. Ela sabia disso, mas não me poupava…
Pin… pin… pin…
Além do mais, meu pai deveria chegar a qualquer momento. E eu não queria encontrar com ele justamente na hora em que estivesse concluindo a missão em prol da minha paz noturna. Já era tarde, eu não tinha noção da hora, mas era madrugada com certeza.
Seria mais uma noite em que o cheiro de cachaça iria invadir a casa, assim como os passos meio trôpegos dele procurando apoio até chegar no quarto. Ele que fechasse a torneira, já que sempre acordava todo mundo quando chegava. Porque a panela já estava no meu destino, de uma forma ou de outra. Nós iríamos nos encontrar de manhã.
“Mas, se ele demorar, este barulho não vai me deixar dormir…”
Pin… pin… pin…
Decidi levantar e resolver logo aquilo… Frio demais… Procurei meus chinelos tateando com os pés no chão… nada. Merda! Respirei fundo e fui só de meia mesmo, pisando no chão gelado. Andei devagar, mas os tacos meio soltos me denunciaram e meu irmão mais novo chamou pelo meu nome…
“Shhhhhh”, fiz da forma mais suave que consegui, ali paradinha no escuro. Se ele acordasse também, minha mãe iria me matar.
Silêncio.
Continuei pé ante pé. Segurei firme a maçaneta e puxei. Um barulho seco, mas curto. Esperei de olhos fechados (como se isso fizesse alguma diferença) o choro de meu irmão. Silêncio novamente.
Entrei na cozinha rapidamente. No escuro mesmo achei a torneira e torci a danada bem forte. “Alguém tem que consertar isso, gente”, resmunguei.
Ouvi passos do lado de fora. Ele estava chegando, gelei. Não queria que ele me encontrasse acordada, não queria que ele me encontrasse definitivamente.
Enquanto a chave vacilava em encontrar a fechadura, corri para o quarto e só encostei a porta, para não fazer mais barulho. Ruído de chaves caindo no chão, respirei fundo. “Como será que ele vai chegar hoje? Tomara que durma logo…”
Eu sempre ficava tensa nessas chegadas. O que iria acontecer daquela vez? A violência pairava no ar. Às vezes, descia sobre nós, outras, sobre minha mãe, e em muitos momentos ficava somente à espreita, nos lembrando que algo ruim poderia acontecer. Como as madrugadas eram cruéis!
Ele entrou, acendeu a luz, que escorreu pela fresta da porta mal fechada do nosso quarto… Fechei os olhos e rezei baixinho para ele não dar trabalho pra minha mãe naquela noite. Porque acabava sobrando pra gente também.
Lembrei da prova de matemática no dia seguinte e que poderia sentir sono. Ainda bem que tinha estudado. Não tinha medo de prova. Tinha medo de gente.
Ouvi os passos passando pelo corredor e a luz desaparecer da fresta da porta e surgir novamente depois que os passos avançaram. Ele acendeu as luzes por onde passou e, claro, não apagou nenhuma atrás de si. Silêncio novamente. Ouvi minha mãe se levantando, o chinelo dela estava com a sola seca e fazia um barulho chatinho enquanto ela arrastava os pés pela casa. Toda noite era a mesma história. Se estivéssemos com sorte, ele desabava rapidamente na cama e ela levantada para apagar as luzes, resmungando. A sorte nos tinha nos dado uma folga naquela noite.
Acordei com a Rádio Relógio, antes das quatro da manhã. Ele sempre ouvia antes de ir trabalhar, ele era curioso e gostava de descobrir coisas novas, somos parecidos eu acho. As notas da rádio terminavam sempre com um “Você sabia?”. Eu já conhecia a maioria das respostas, mas gostava de ouvir mesmo assim.
Consegui dormir de novo, só às seis a gente começava a se arrumar pra escola.
Acordei com o ensurdecedor bater de panelas matinal de minha mãe. Ela abriu a porta do nosso quarto para dar a mamadeira para meu irmão mais novo. Gritou (àquela hora da manhã, meu Deus…): “Bora, bora acordar! Tá na hora de vocês se arrumarem para o colégio”, falando comigo e com meu irmão, enquanto acendia a luz, porque o quarto ainda estava completamente escuro.
Nos arrumamos rapidamente – minha estratégia era dormir de uniforme para não passar frio de manhã – e saímos para tomar café.
“Ei, você!”
Eu sabia que era comigo e me virei, morta de sono e com preguiça de encará-la de manhã.
“Não esquece de lavar a louça antes de sair”.