Ela andava como se tivesse desfilando pela avenida do sambódromo da Marquês de Sapucaí. Tinha um gingado próprio de dar inveja a todas as outras moças da periferia, onde cresceu junto com sua família de samba no pé. A mãe desfilava na ala das baianas, o pai era um mestre-sala de primeira. Isolda passou o ano inteiro preparando sua fantasia para desfilar na sua escola preferida. Tudo que queria era, naquele ano, ganhar o título da melhor porta-bandeira do carnaval. Quando Isolda sambava, em casa ou nos ensaios, só dava ela, com aquele remelexo sobre o salto, e com seu sorriso grandioso, que contagiava a todos com sua beleza negra. Era naqueles momentos, no samba do pé, que ela se sentia a mulher mais feliz de todas criaturas. No barracão da escola, ensaiava duas vezes por semana. Ali ela esquecia das mazelas, das dores que carregava no corpo e das tristezas do desamor cravadas na alma.
Vivera trinta anos ao lado do homem que se dizia ser seu dono. Ele fora o seu primeiro amor. Com quem se desnudou pela primeira vez. Um homem que lhe prometera o céu e a terra. Ao seu lado, desejava ser feliz. Cantarolava para as amigas, que não poderia desejar homem melhor para sua vida. Nada faltava para ela. Dissimulava a felicidade.
O marido, caminhoneiro de estrada, viajara, por duas semanas, para o Paraguai. Tinha que descarregar carros novos na capital daquele país. Mesmo distante, todos os dias ele ligava, no mesmo horário, às 22 h, para se certificar que Isolda estaria em casa. Ela, que era mulher sabida, aprendera com o tempo dos maus-tratos a inventar suas próprias sobrevivências.
O dono mal sabia que era no barracão da escola de samba onde Isolda se refugiava e recarregava suas baterias, de alegria, de gozo pela vida. Ali, ela era outra mulher! Era a Isolda de si e do samba. O samba estava no sangue.
Quando o Dono ligava, ela atendia o telefone, narrava o que tinha feito na ausência do marido, dizia-lhe que sentia saudades, dava-lhe boa noite, bocejava de sono e se despedia com as palavras falsificadas de amor.
Ainda com o sangue fervente do samba, jogava-se sobre a cama vazia. Uma cama só sua!! Ali ela se saciava, sentia o prazer dos seus toques, deslizando por suas partes íntimas. Ali, naquela intimidade com seu corpo, desejava Drummond, seu poeta preferido, na sua cama. Delirava com seus sussurros poéticos eróticos.
Com o sol despontando por trás do morro onde morava, já estava Isolda preparando a marmita para o trabalho. Descia a escadaria do morro até a parada do ônibus. Com sorte, no empurra-empurra conseguia entrar no ônibus e um lugarzinho para sentar, até chegar ao destino do trabalho. Trabalhava em uma fábrica de tecidos importados. Era costureira de primeira! De costura fina! Todo tipo de roupa sabia fazer. Não faltavam elogios de satisfação dos patrões.
Nas horas da pausa do trabalho, Isolda ligava seu radinho, na expectativa de ouvir um samba dos bons, que a fizesse cair no remelexo. E, quando ouvia Beth Carvalho cantar, ninguém a segurava. O samba subindo pelo corpo, o suor molhando sua pele e lá estava ela no molejo de novo, até escutar alguém gritar “aqui não é o barracão de escola de samba, Isolda. Vamos, preta, ao trabalho”. Era quando ela sorria com aqueles dentes alvos e retomava o pedal da máquina de costura, toda satisfeita.
Depois do expediente de trabalho, regressava para casa e, no caminho, passava no mercadinho do bairro, comprava a comida da janta. Cachaça para fazer caipirinha não podia faltar. Com a sacola carregada, subia o morro, cantarolando o enredo da escola de samba. Tinha que estar com ele na ponta da língua.
No caminho de casa, passou no barraco da amiga Cidinha, queria que ela lhe pintasse as unhas de vermelho. As amigas colocavam os assuntos em dia. Demorou ali com Cidinha, mais do que devia. Era tarde, por volta das 20 horas, quando ela se deu conta do entardecer da noite, despediu-se da amiga e tomou o rumo de casa.
Ao chegar em casa, deparou-se com o Dono. Chegara de surpresa. Isolda não o esperava. Fingiu alegria, dissimulava muito bem. Ele olhou para o relógio. Olhou para ela e por alguns minutos emudeceu.
Ela disse-lhe: “vou preparar o jantar”. No outro tinha que trabalhar muito cedo. Ele tinha fome de sua comida, era certo, mas sua fome maior era a fome de Isolda.
Desconfiado, olhou para ela, viu suas unhas vermelhas pintadas. Começou a perguntar a perguntar, alterou a voz, gritou… Convenceu-se de que Isolda escondia alguma coisa dele. As perguntas eram incessantes: “Você… traindo? Quem é ele?” Estava com o sangue quente. Puxou a toalha da mesa, pratos ao chão, portas trancadas… o rádio gritava, lá fora, a noite escura, dentro de casa, o quebra-quebra, nada se ouvia lá fora.
Isolda, em prantos, voz entrecortada tentou dizer somente sua verdade. O Dono não a ouvia, estava virado no demônio. Tinha ciúmes até das amigas da mulher.
Sem acreditar nas palavras de Isolda, jogou-a sobre a cama, rasgou-lhe a roupa, e sem piedade nenhuma, fez dela sua. Sua escrava, sua mulata, sua coisa, seu objeto. Isolda lutou com todo seu corpo para daquelas garras de macho-cão se livrar. Não teve jeito. Ele a dominou. Sem gritos, sem choros, Isolda se levantou, foi ao banheiro, lavou se toda por horas. Sangrava! Estava ferida. Uma ferida que mexia na sua dignidade, que transpassava sua alma.
O dia amanheceu, o Dono partira pela madrugada estrada afora. Machucada, Isolda, com as marcas das dores por todo o corpo, colocou o vestido mais bonito pendurado em seu guarda roupa. O vestido vermelho que ela mesma havia costurado, calçou seu sapato preto de salto Luiz XV e, em sua bolsa, colocou seus documentos. Na mala, jogou apenas alguns pares de roupas, sua fantasia de carnaval, seus colares e seu perfume preferido. Bateu a porta!
Sobre seu paradeiro, perguntavam o Dono, os vizinhos, a comunidade.
Por onde anda Isolda, não se sabe, ninguém viu. Tudo que se sabe é que Isolda ensaiou o ano inteiro, mas chegou o carnaval e ela não foi desfilar.