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Tempo

O Tempo em Mim – diário de Analba Brazão

Esperamos tanto tempo,

por algo que denunciasse
a fraqueza de nossos

limites…

Que o cometa chegasse
mudando as estações, os líderes

e o dinheiro de lugar
Que os discos voadores flanassem num céu
chapisco o de estrelas, desterritorializando o mundo.
Esperamos. Com a mesma certeza,

pelas coisas comezinhas
o amor perfeito

a casa nova, o contrato fechado
sem cláusulas minúsculas.

O destino cumprido.
Esperando o tempo,

na expectativa de que este
crescesse engarrafado,

como uma miniatura de paisagem
que só cabe nas ideias. Esperávamos. Mas, vem o universo
e dá uma rasteira, uma flopada,

um puxão de orelha.
E eis que o agora é tudo que temos.

Temos o útero da baleia
os pensamentos cheios de estrelas.

Os cometas dentro das mãos
e um labirinto de discos voadores

nos destinos possíveis
que iluminam o caminho. Temos os amores

imperfeitos
as janelas abertas,

e um violino

pedindo “calma”
E o tempo já não permite queixumes, de sobra ou falta
O tempo é a própria fresta

em que o sol nos abraça
Sem pedir licença.

Resolvi recomeçar a minha escrita sobre meus dias de confinamento com este poema de Daiany Dantas a respeito deste tempo que estamos vivendo. Um presente para mim e para quem vai ler este diário do confinamento.

Já há muitos dias estou em São Paulo. Dentro da minha rotina diária, escrevo um pouco sobre as minhas sensações nestes dias em que me encontro comigo mesma.  Com certeza, se estivesse confinada no meu espaço, na minha casa, seria uma outra narrativa. Tem sido difícil estar sozinha numa cidade que não é a da minha morada. Sinto falta de tudo. Da minha cama, dos meus objetos, das minhas companheiras de casa, do meu cachorrinho, como sinto falta dele! Da cozinha, de preparar bolos e comidinhas para compartilhar.

Pelos meus limites neste momento, uso a tecnologia para registrar. Escrevo um pouco e quando canso uso um programa maravilhoso. Eu falo e ele escreve para mim, um texto com erros, às vezes de ortografia e de acentuação. Recorri a uma grande amiga, para que fizesse essa correção.

Já que não posso ler neste momento, por recomendação médica, escrever e gravar áudios tem sido a forma que encontrei para preencher um pouco meus dias de confinamento. Ao fazer isto, podemos refletir e expor na intimidade estas reflexões. No meu caso, ajuda a superar os momentos de angústia e de solidão. Estou aprendendo a gostar também de estar comigo mesma. De me perder em meus pensamentos. Descobri que gosto da minha própria companhia.

Mesmo com esta descoberta – a do prazer da minha companhia, do gosto de poder escolher a hora em que vou dormir e em que vou comer, saindo totalmente da rotina e criando outras rotinas -, sinto, às vezes, uma solidão danada. É destes momentos que nasce o invento das coisas para passar o tempo.

Foram muitos desafios que tive que enfrentar nestes últimos dias. Fiquei só, depois de uma cirurgia delicada e de ter consciência de que tenho que fazer tudo devagar, sem ninguém para me lembrar do que não devo fazer, ou pra apanhar coisas do chão, ou pra preparar minha comida, ou para chamar minha atenção quando levanto da cadeira sem lembrar da recomendação de que tenho que me levantar e sentar como se estivesse grávida e nos últimos meses de gestação.

Me veio a pergunta: depois de 34 anos que pari, eu ia me lembrar de como era se sentar como grávida de 9 meses?

Eu fui ao hospital, para parir, à noite, já estava em processo de dilatação, depois de passar o dia vendendo pão e andando de ônibus. Também no transporte público me locomovi até à maternidade, meu objetivo era avaliar como estava. Quando constataram que possuía 3 cm de dilatação, ainda fui ver o show de Tetê Spindola, que acontecia na cidade aquele dia, antes do parto. Realmente, o conselho para eu lembrar de como me sentava ou me levantava grávida não era o melhor, no meu caso. Engraçado ter vindo agora essa lembrança. Rio sozinha. Vou escrevendo e as lembranças vão chegando.

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Voltando ao presente, três dias após a cirurgia tive um grande susto. Fiquei, por algumas horas, sem luz nenhuma no olho operado. Foi um momento de muita angústia, no entanto, a razão foi maior que a emoção, maior que o medo. Eu estava sozinha e tinha que resolver. Consegui falar com a minha médica e fui ao encontro dela, no Hospital. O porteiro do prédio me ajudou a chamar o táxi, já que, pelo nervosismo, não estava conseguindo.  O que aconteceu, soube quando lá cheguei, foi que a pressão do olho baixou de vez. Fui medicada e voltei para casa. Já no caminho, comecei a ver uma luz.

O susto me remeteu ao dia em que fui com minha mãe, em 2008, fazer uma campimetria. No momento do exame, ela também teve um apagão nos dois olhos e ficou sem enxergar. A luz deles, diferente do que aconteceu comigo, nunca mais voltou. Esta memória me deixou angustiada e a minha quarentena possui a especificidade de estar também confinada por causa desta cirurgia, que precisou ser realizada em meio à pandemia. Desta vez, sozinha, tenho que dar conta de todos os cuidados comigo mesma e estou contente, porque, na medida do possível, estou conseguindo.

Tenho procurado criar uma rotina nestes dias, mas não tenho conseguido ainda. Tudo meio desarrumado no juízo. Busco viver um dia após o outro, sem muita programação para o futuro, mesmo sendo um futuro próximo. Vivemos num momento de muitas incertezas. Por conta dos meus limites temporários, pós cirurgia, não tenho conseguido interagir nos diversos grupos da minha militância, a perda desta atividade, tão constante, deixou um grande vácuo nos meus dias. Sei que é temporário e que logo, logo vou poder voltar à ativa. Como não tenho entrado nestes grupos, recebo áudios e mensagens de companheiras me perguntando o porquê da minha ausência nos debates.

Como disse, estou vivendo um dia atrás do outro.  De licença médica, não tenho a mesma quantidade de reuniões online que muitas companheiras da militância e do trabalho tem me relatado. Então, para mim, todos os dias são iguais. Fico sem perceber quando é sábado ou domingo, meu relógio biológico também mudou, o horário das minhas refeições está bem bagunçado. Tenho que dormir após o último colírio, que coloco à meia noite e meia. E me levantar às seis da manhã, para iniciar os colírios.

E o que fazer para passar o tempo, para me conectar com o que está acontecendo fora desta quitinete que está sendo a minha morada nestes dias em SP?

Crio formas de me comunicar, de conversar sobre outras coisas para não ficar fixada nas informações sobre esta pandemia. Escuto, logo cedo, o podcast de 30 minutos que se chama Café da manhã, e faz uma síntese das notícias do dia anterior. Fico com esta informação no início do dia e evito buscar notícias sobre a pandemia,  impedindo a ansiedade. Já aconteceu, duas vezes depois de assistir o jornal, que eu manifestasse a sensação dos sintomas. Me recolho, faço exercício de respiração e vou escutar música para me desligar.

Uma vez por semana, mesmo em licença, optei por participar das reuniões online com a equipe do SOS Corpo. Por três motivos: me inteirar de como as colegas estão analisando esta conjuntura; ficar por dentro das ações do movimento que integramos; e me conectar com cada uma, pois também sinto saudades. Muito bom saber que as redes de solidariedade têm, a cada dia, se consolidado. Saber como foi importante a ação dos movimentos sociais, em particular do movimento feminista e mais particularmente ainda da AMB, na pressão em torno da aprovação da renda básica, entre outras ações.

Acompanhando a distância toda esta movimentação, me volta a certeza de que só na coletividade conseguimos ultrapassar as barreiras, nos acolher e acolher outras e outros. É na coletividade que nos fortalecemos. Me alenta perceber que, passada esta pandemia, mesmo com todas as contradições, estaremos mais fortes. Vamos, sim, superar.

Nos reinventamos a todo instante e as dificuldades nos empurram para esta recriação da vida. De novas formas de luta. Mesmo mantendo distanciamento, conseguimos seguir.

“Mas é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana, sempre, quem traz na pele esta marca possui a estranha mania de ter fé na vida…”, diz a canção. E nós temos fé na vida. Vamos passar por mais esta experiência e teremos muitos aprendizados coletivos e individuais.

Tenho inventado outras coisas para me conectar com amigas e amigos queridos por este Brasil afora, e com amigas que estão fora do Brasil. Interessante, quando não estávamos confinados, mesmo morando longe, não fazíamos estes tipos de encontros virtuais, quando fazíamos eram apenas para reuniões de trabalho. Não nos encontramos virtualmente para falar da gente, pra recitar poesia e festejar. Este é mais um aprendizado que teremos pós pandemia. Lógico que o melhor é estarmos juntas presencialmente, que possamos nos abraçar, nos beijar, nos tocar, mas esta distância forçada abriu esta possibilidade de nos vermos virtualmente e trocarmos mais estes carinhos a distância. Tem sido muito importante para mim.

Durante estes dias, já me encontrei virtualmente com meus sobrinhos e sobrinhas numa conversa tão boa, cheia de lembranças da infância deles comigo. Falamos de como cada um estava se sentindo, como estavam cuidando dos seus pais e mães (meus irmãos). Rimos muito e Filipe, meu filho, também participou de uma forma inusitada, sem parar quieto. Foi um momento que aqueceu meu coração. Tenho uma relação muito especial com meus sobrinhos e sobrinhas, que alimento desde que eles eram pequeninos.

Fazendo pic nics, viagens, levando para cinema, recebendo na minha casa com bolo de cenoura e cobertura de chocolate. Desde 2010, realizamos anualmente um momento nosso, numa feijoada, feita por mim, com muito amor, para eles. Hoje, quase todos são adultos, uns já casados e com filhos (meus sobrinhos netos). Também me encontrei com meus irmãos e irmãs. Temos um grupo de zap só entre nós, onde tomamos decisões importantes de cuidado com mamãe, nele também discutimos política. Temos sorte de estarmos todos vinculados à esquerda, então, nossos debates são mais tranquilos.

Hoje, além deste grupo de irmãos, minha irmã criou o grupo “Família”, mais alargado, com sobrinhos e sobrinhas, agregados  e agregadas. Também tenho feito chamada de vídeos para ver minha mãe. Ela não me enxerga, mas eu a vejo e conversamos e cantamos juntas.  Ela está só com as cuidadoras e esta é uma forma dela se sentir próxima de nós.

Amigas, felizmente, não faltam, de diferentes faixas etárias e de diferentes espaços. Por isso criei três grupos de amigas, também para conversar uma vez por semana virtualmente. Até o aniversário de uma amiga fizemos virtualmente, com direito a bolo e tudo mais. É muito interessante a experiência de nos encontrarmos para falar “miolo de pote”, sem a seriedade das reuniões, de conversas tensas. Estes encontros têm fortalecido nossos afetos.

Outra invenção para dar mais leveza a estes dias são os momentos dos Saraus de Poesia. Convidei doze amigas que sei que gostam muito de poesia para nos encontrarmos e recitarmos umas para as outras. Ainda não conseguimos reunir todas as doze. Temos feito com quem pode e tem sido um momento muito lindo e alentador.

A primeira poesia que foi lida para abrir o primeiro Sarau foi esta que compartilho aqui:

Sombras dançando nos muros, sons que brotam no escuro,

Nada na vida me assusta.

Sombras dançando nos muros, sons que brotam no escuro.

Nada na vida me assusta.

Cachorros bravos rosnando, fantasmas voando em bando.

Nada na vida me assusta.
Dragão soprando chama ao pé da minha cama.

Isso não me assusta nada.

Eu grito sai! E correndo ele vai.

E faço zoeira da sua carreira.

Eu não vou chorar. Ele terá de voar.

E eu me divirto com o seu faniquito.

Nada na vida me assusta
Bruxa e caldeirão fervente, leões livres pela frente.

Eles não me assustam nada.

Panteras atrás do muro, estranhos no escuro.

Não, eles não me assustam nada.

Carrego sempre comigo um amuleto escondido.

Explodo o fundo do mar sem precisar respirar.

Nada na vida me assusta. Nada.
(Maya Angelou)

 

 

Este poema tem me inspirado. Quando estou muito assustada com tudo que estamos passando com esta pandemia, com todas as incertezas que nos rodeiam, lembro da poesia de Maya Angelou e procuro me encorajar e repetir para mim mesma: nada na vida me assusta. Mesmo estando assustada.

Tenho sido muito agraciada por pessoas muito queridas. Recebi muitos áudios com poesia recitada, músicas cantadas por crianças lindas, amigas, que em vez de ligar, me mandam vídeos  para que eu as veja, mandando mensagens lindas. E muitas chamadas de vídeos. Estas me deixam cada vez mais perto.

Lembro que das outras vezes que estive em São Paulo para fazer as cirurgias e que ficava também confinada para me recuperar, reclamava porque as pessoas só me mandavam mensagem de texto por WhatsApp, só às vezes áudios. E eu brincava, dizendo a elas que eu fiz a cirurgia do olho e não da boca e que eu podia falar. Também lembrava que meu telefone recebia chamadas, não apenas mensagens de Zap. Desta vez, tenho recebido muitas ligações e muitas videochamadas. Que tem me alegrado o dia.

Tenho feito tudo isso para procurar não adoecer. As notícias são péssimas, a cada dia nos deparamos com o aumento de mortes , com a falta de estrutura nos hospitais, com notícias de que profissionais da saúde estão se contaminando por falta de material para eles se protegerem, ainda, no meio do caos, notícias de roubo de máscaras, estes dias em São Paulo. No caso do Brasil, temos que lutar contra a pandemia e contra este governo do mal. Durante esses dias, neste enclausuramento, tenho pensado muito a respeito de como esta pandemia do coronavírus tem demonstrado com muita força as desigualdades sociais. De repente, vemos os jornais lembrarem da população de rua, das favelas, da falta de saneamento, dos e das trabalhadoras informais.

Às vezes, penso que está se descobrindo agora a situação de milhões de brasileiros. Que a sociedade está percebendo que a desigualdade social afeta a todos e todas. Será que estou muito esperançosa nesta mudança? Este momento faz com que não saibamos como será o nosso futuro. É um momento de muitas incertezas. Tenho, entretanto, uma única certeza: não sairemos desta pandemia do mesmo jeito.

Outras vezes me pego pensando sobre o depois. Como será nosso contato físico? Como será ir às aglomerações? Nossas caminhadas, nossas festas, nossos encontros. O que vai mudar? O contato físico que é tão importante pra nossa cultura, o abraço, os beijos, as cirandas, como será? Recordo a década de oitenta, quando tivemos que aprender a transar com camisinha, por conta da AIDS. Assimilamos que camisinha não apenas evitava engravidar, mas adoecer. Lembro muito das campanhas da época. Talvez isso não tenha nada a ver com o que estamos passando agora. Mas veio esta lembrança.

Tenho procurado me fixar nas boas notícias, na quantidade de pessoas que estão, de uma forma ou de outra, procurando ser solidarias. Muitas experiências bonitas e transformadoras em todas as partes do mundo. De como a arte tem sido também companheira deste momento que estamos vivendo.

Penso que neste momento está aflorando o que há de melhor nas pessoas, mas também o que há de ruim. Quero acreditar que a solidariedade seja maior, que se fortaleça.

A população está tendo a oportunidade de saber o que o capitalismo faz com nossas vidas, do poder do consumo, de conhecer mais a fundo a situação da população mais vulnerável, que engloba na sua maioria a população negra. Sem esquecer das mulheres e das crianças vítimas de violência que estão confinadas junto com seus agressores. Que fazer nestes casos para que estas mulheres não se sintam sozinhas?

Desde o início da pandemia que me chamava a atenção, depois da China, os noticiários só mencionavam as consequências do vírus nos países da Europa. Lógico que a quantidade de infectados e mortos naquela região é uma situação desesperadora. Mas, impressionava que não se falasse ou falassem muito pouco sobre a situação nos países do continente africano. Talvez porque ainda não havia chegado com força o coronavírus naquela região. O que sabíamos era através das redes sociais. Eu, particularmente, a partir de um grupo de Whatsapp  que reúne feministas de vários países da África de língua portuguesa. Foi nesse grupo que tomei conhecimento da Campanha POVO AFRICANO NÃO É COBAIA. Contra a possibilidade sinalizada por cientistas franceses de, mais uma vez, testar a vacina primeiro no continente africano. Por que mais uma vez o continente africano iria servir de laboratório? Como ler este absurdo? É realmente o racismo encarnado com todas as forças… E de novo a tentativa de colonizar os corpos de homens e mulheres daquela região. Esta campanha não conseguiu se alastrar, não se tomou de conta. Por que será? Será que precisamos repetir que a vida da população negra também vale?

Nos deparamos com o número de mortos nos EUA nesta pandemia. A grande maioria são pessoas negras. No Brasil, também estamos neste rumo. Sabemos que o Coronavírus não escolhe raça, gênero ou classe social. Verdade, né?  Então por que o índice de mortes é maior novamente na população negra?  O racismo estrutural de vivermos num país que segrega a população negra do direito a uma vida digna.

Durante este confinamento, a minha cabeça deu muitos giros e quanto estou com estas questões que escrevi acima, sem muita elaboração (já que não é a minha intenção uma elaboração aprofundada, e, sim, colher os meus pensamentos que se relacionam com o que estou vendo e lendo).

A intenção é de escrever no sentido de compartilhar para os outros e para mim mesma esta experiência. E de me ver com meus próprios olhos, com meu coração e com a minha emoção. Quando meus pensamentos focam neste medo, nesta angústia, procuro desanuviar.  Sou muito movida pela emoção, pelos sentimentos e me reporto novamente a Audre Lorde, quando ela diz que nossos sentimentos são nossos caminhos mais genuínos para o conhecimento.

E sinto que durante este confinamento estou me dando o direito de me conhecer a cada dia. Estar sozinha tem também estes benefícios. Um dos aprendizados é reconhecer que estou realmente envelhecendo. Foi muito chocante, no início da pandemia, me reconhecer dentro do grupo de risco por causa da minha idade. Estou com 59 anos. Completo 60 anos em agosto.

Nunca tive problema com a minha idade, nunca escondi, mas reconhecer que envelhecer te coloca no grupo de risco e observar como as pessoas falam das pessoas mais velhas, assusta. E sabemos que na nossa cultura, ter essa idade, é como se não pudéssemos mais ser nada. Me dei conta de que envelhecer, além de limitar fisicamente, existe o limite que a sociedade nos impõe. Talvez por eu conseguir transitar com pessoas da minha idade, pessoas mais velhas e pessoas muito jovens e gostar de muitas coisas que a juventude gosta, talvez tenha dificuldade de enxergar que estou envelhecendo. Ainda tenho muita energia para a luta, e para a diversão. Ainda sonho muito e como diz Milton Nascimento Sonhos não envelhecem…. Pode ser isso.

Tenho escutado muitas músicas, feitos listas para compartilhar com as amigas,  também de músicas infantis para meus sobrinhos e sobrinhas netas e netos e netas de amigas. Organizo encontros virtuais, que vão desde sarau de poesia a espaços para conversar sobre a vida, sobre amizade e dar boas risadas. O riso também é muito importante.

Por enquanto, por recomendação médica, não posso dar gargalhada nem chorar… quando me dá vontade de chorar, boto uma música alta e vou dançar, faço festa para mim mesma e danço em frente ao espelho comigo. Com o cuidado de não balançar a cabeça.

Só me movimentando, devagarinho… E esta semana tive uma boa surpresa, amigas que conheci na África do Sul, em 2018 , me colocaram em um grupo de zap. Todas muito jovens, quando eu estava em Cape Town, elas se aproximaram muito de mim. Fiquei muito contente em reencontrá-las, já casadas, com filhos. Tudo por causa deste confinamento.

O Instagram bombando de lives, também tem me alimentado. Ver e ouvir Conceição Evaristo, Cida Bento. Assistir Martins cantando músicas tão lindas, também tem enchido meus dias.

Há também um momento que adoro, faço dele uma catarse e não me sinto só. Toda noite, às 20 horas, estou com toda a vizinhança a gritar, com muita força: FORA BOLSONARO! Muitas panelas batendo, muita gente gritando nas janelas dos prédios dos arredores. Nesta temporada em que estou aqui, só não houve panelaço dois dias.

Aprendi a ter prazer de cozinhar só pra mim. E achar um prato de arroz com ovo o frito o mais gostoso do mundo. Sempre gostei de cozinhar. Para muita gente. Tenho um prazer imenso em preparar refeições para toda a minha família, meus amigos e amigas. Com a minha mãe, aprendi a cozinhar sempre em grande quantidade. Herança de família grande. Nesse confinamento, nos primeiros dias, a comida sempre era muita, mas, a cada dia vou diminuindo o volume. Com a saudade de cozinhar para muita gente, na sexta-feira da paixão resolvi fazer uma salada fria de macarrão com atum. Com ela, em recipientes deixados na portaria, presenteei meus amigos e amigas, que tem sido bastante solidários comigo neste momento que me encontro aqui. Senti-me tão bem em fazer, e mais ainda deles terem gostado. Retribuindo o amor e o carinho que recebo diariamente.

Comecei o confinamento em Recife, na minha casa. Vim a São Paulo, onde estou confinada há 22 dias. Sozinha. Ainda permaneço mais 5 dias por aqui. Tenho escrito este, que estou chamando meu diário da quarentena, diariamente. Todos os dias escrevo um pouquinho.  Com certeza o tempo em Recife será diferente. Aqui, como não estou trabalhando, consigo todo dia escrever este diário. O tempo durante este isolamento social também tem nos desafiado.

O Tempo parece que encurtou para muita gente. Talvez venha a encurtar também para mim.  Continuarei a escrever este diário. Tem me feito muito bem, compartilhar com as pessoas que amo, como diz Civone, que amo como quem não teme. Para encerrar esta escrita, trago a poesia de Fernando Pessoa sobre o Tempo. 

Eu sei que por algum tempo vou me manter oscilante entre a razão e o desejo.

Algumas decisões são tomadas com o coração inquieto

e o pensamento tomado por muitas coisas que aconteceram e acontecem, tudo misturado.

Sei também que o tempo vai ser meu amigo para essas coisas da vida.

Com coragem eu sigo, nessa velocidade que não temo, nem mesmo de ousar ser feliz.

Analba Brazão, nascida em Natal/RN é antropóloga e ativista do Movimento Feminista Brasileiro e da America Latina. Atualmente é educadora do Instituto Feminista para a Democracia – SOS Corpo

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