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Nosso Sarrau Poético!

O que é um sarau? Essa forma de reunir pessoas em torno da palavra escrita vestida de oralidade, tons e interpretação. E entregou às narrativas feministas mais uma ferramenta de autorreflexão e escuta afetiva.

E o que seria, então, num ano pandêmico como 2020 organizar um Sarau virtual?

Analba Brazão, feminista e educadora popular potiguar residente em Recife, ao isolar-se em São Paulo para uma (a terceira) delicada cirurgia para a reversão de glaucoma, decidiu usar o sarau como um de seus territórios de encontro com o afeto e a palavra.

Assim, surgiu numa sala de conferências virtual o “Sarrau Suruba”. O nome jocoso não flertou tanto com o conteúdo dos encontros, e foi dado por Débora Guaraná, feminista e comunicadora desta rede de afetos. Mas, fala de misturas, de encontros de desejos e de peles que fabricam novas trocas e encontros.

2020 foi um ano atípico, que testou nossa criatividade para não nos perdemos de quem a gente gosta e suscitou novos modos de compartilhamentos das coisas antes comuns. A poesia surge nesse contexto como algo que tece os sentidos da vida, alimenta a alma e que pode proporcionar momentos de leveza e encanto. Pela via poética, o texto evoca também a partilha de nossas vivências, aquece a esperança e conforta o peito. E assim fez-se!

O sarau reuniu um grupo de amigas de andanças feministas e outras, vindas de aventuras pela vida. Apaixonadas pela literatura, poesia, contos, todas convidadas e acolhidas por Analba, o elo em comum, na sala virtual da Poesia. Em tempos de isolamento social, de confinamento em nossas casas, longe do toque de nossos corpos, dos abraços, dos cheiros no cangote, do simplesmente estarmos juntas, seria a poesia nosso afago? Nossa maneira de reabastecer nossas energias? Sim! Essa era a ideia:  reunir mulheres que de certa forma caminhavam juntas. O que temos em comum? Todas somos feministas e atuantes. E amamos literatura, tendo a poesia como principal eixo de nossas manifestações.

Os convites para fazer parte desta rede foram recebidos com alegria e entusiasmo por Whatsapp. Em uma noite, mais precisamente uma quarta feira, 3 de abril de 2020, a nossa sala virtual de sarau poético foi aberta.

Foi um encontro lindo e potente, que nos legou a ideia de nos encontrarmos para o Sarau uma vez por semana.  E o dia escolhido foi os domingos. O grupo reúne mulheres que também escrevem, como Civone Medeiros, Gabriela Fidelis, Daiany Dantas. Mas, parte sempre dos debates entre organizadoras preocupadas com uma curadoria afetiva – já que a poesia não é de quem escreve, mas de quem precisa dela – Analba Brazão, Malu Oliveira, Carla Batista, Débora Guaraná, Milena Argenta, Priscila Brito  e, mais tarde, Verônica Aragão e Janaiky Almeida partilharam momentos que seguiam intervenções temáticas – uma curadoria mais constantemente feita por Malu e Analba – e incluiu poesia de mulheres negras, indígenas, poesia erótica, poesia que virou canção, entre outras.

As trocas, por vezes no circuito dos temas propostos, em outras feitas de forma livre, seja trazendo um poema de autoria própria ou uma descoberta da semana, sempre emocionavam. Somos 11 no nosso grupo de Zap. No entanto, no Sarau nunca estiveram todas as 11. Tinhamos presença constante de pelo menos 4 companheiras, vez em quando oscilava com acréscimos e ausências de uma ou duas presenças outras.

Mesmo sem participar dos encontros virtuais, os nossos Saraus, algumas delas resolveram permanecer no grupo de Zap. Para elas, estar no grupo era permanecer recebendo bons fluidos, acolhidas num lugar de expressão do cuidado. E não queriam deixar de beber das fontes poéticas compartilhadas.

“A poesia não é um luxo”, dizia Audre Lorde. Assim, a poesia é para todos. A poesia nos traduz! É nossa existência,… palavras de carne, sangue de ressurreição. No sarau poético de cada domingo, sedentas de poesia, a cesta poética crescia e crescia. Poetas de todos os cantos do mundo adentravam pela porta de nossa sala. Havia espaço para todas.

Poemas de homens e mulheres. Poesia clássica e contemporânea. De Maya Angelou a Caetano Veloso. De Paulo Leninski à Mia Couto. De Wyslaza Symborzka à Adelita. De Cidinha Oliveira à Odailta Alves, de Rizolete Fernandes à Mariza Castro, de  Clarice Lispector a Cecília Meireles, de Cora Coralina à Conceição Evaristo. Do verso erudito ao singelo. Dos temas de amor aos temas de luta.

Desde a primeira sessão, recordamos o ecletismo pautado pela própria rede de declamadoras: Maya Angelow chegou com “mulher fenomenal”; Daiany Dantas com o “Banquete” e ” A espera “; Gabi, com sua voz melodia recitou seu poema “linhas”.

Durante este período, de abril a dezembro, os nossos encontros e recitais também foram intercalados por conversas, sobre como estávamos nos sentindo nesta pandemia.

No poetizar de Conceição Evaristo, Carolina de Jesus, rememoramos as nossas ancestralidades. Civone Medeiros, com sua performance poética erótica, feminista, agitava nossas emoções. Para falar de eroticidade, partimos da poética Hilda Hilst, deleite de desejos e prazer. Florbela Espanca também foi uma poetisa assídua. Muitos nomes passaram pelo balaio poético, nomes bem conhecidos e nomes não tão conhecidos que foram se apresentando para nós. Realmente uma lindeza! Mil belezas!

Compartilhávamos no grupo de Zap, através de áudios, vídeos e texto as poesias recitadas no sarau mais recente, para que as companheiras que não puderam estar presentes fossem também agraciadas destes momentos lindos. E, por duas vezes, como não pudemos nos encontrar virtualmente, combinamos de postar na mesma hora uma poesia no grupo. Era o Sarau possível.

Mas também o impossível. A transcendência da poesia, fazendo verso do caos em nossas vidas.

Quando começamos, a ideia era nos encontrarmos enquanto estivéssemos em isolamento, achávamos que passaria logo, mas, já estamos há exatos nove meses nesse ritual. Uma gestação. E continuamos a nos encontrar. Fechamos o ano no dia 30 de dezembro fazendo um Sarau que chamamos de balanço poético de 2020.

Neste, estávamos com as emoções à flor da pele. As lagrimas caíram, as palavras chegaram para expressar a gratidão destes momentos juntas e por termos sobrevivido ao ano de 2020, como bem expressou Janaiky: “A poesia me salvou e nos ajudou a salvar umas às outras”.

Analba declamou, em seu balanço algo que remetia aos momentos mais difíceis que vivenciou, poema de Maya Angelou, no qual disse ter se agarrado:

“Eu me levanto”.

 

(…)

Você pode me fuzilar com suas palavras,
E me cortar com o seu olhar
Você pode me matar com o seu ódio,
Mas assim, como o ar, eu vou me levantar
A minha sensualidade o aborrece?
E você, surpreso, se admira,
Ao me ver dançar como se tivesse,
Diamantes na altura da virilha?
Das chochas dessa História escandalosa
Eu me levanto
Acima de um passado que está enraizado na dor
Eu me levanto
Eu sou um oceano negro, vasto e irriquieto,
Indo e vindo contra as marés, eu me levanto.
Deixando para trás noites de terror e medo
Eu me levanto
Em uma madrugada que é maravilhosamente clara
Eu me levanto
Trazendo os dons que meus ancestrais deram,
Eu sou o sonho e as esperanças dos escravos.
Eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto”.

 

 “O sarau foi este espaço de acolhimento e como ele tornou-se importante na minha vida e na vida de nós que por ele passamos”, dizia Verônica e para expressar este sentimento ela trouxe a poeta goiana Cora Coralina, com seu poema “A procura”.

 

“Andei pelos caminhos da Vida.
Caminhei pelas ruas do Destino –
procurando meu signo.
Bati na porta da Fortuna,
mandou dizer que não estava.
Bati na porta da Fama,
falou que não podia atender.
Procurei a casa da Felicidade,
a vizinha da frente me informou
que ela tinha se mudado
sem deixar novo endereço.
Procurei a morada da Fortaleza.
Ela me fez entrar: deu-me veste nova,
perfumou-me os cabelos,
fez-me beber de seu vinho.
Acertei o meu caminho”.

 

Neste espaço, pudemos reencontrar com diferentes poetas e conhecer-novas outras poetas que até então não as conhecia, mencionava Carla. Em homenagem ao poeta Jaci Bezerra, ela lê uma de suas poesias “Tatuagem na água”.

 

 

Daiany, nossa poeta potiguar, nos poros da emotividade, falou que diante de tantas fragilidades e desafios postos pelo difícil contexto, o sarau foi este espaço de fortalecimento, reconstrução, de muita potência e de regeneração pessoal. Inspirada em sua vivência de espiritualidade, ela compartilhou conosco seu poema “Oração “:

 

“Neste ano
de aflição,
Eu peço
Força nos braços
Pra cruzar
A correnteza.
Com o peito
às avessas
rezo
por uma
Ponte
Um céu
Um chão
Onde cravar 
Minhas pernas
Erguer
Uma fortaleza
Feita de nuvem
E de guelras
Rogo
aos ventos:
Coração,
escape
pela luz da
escotilha.
Peço à mente
Que navegue
Se
Encontrar
Calmaria
E ao tempo
Que me aproveite
Enquanto ainda
Há deleite
Pra atravessar
Noite
E
Dia”.

 

Mas, o sarau também foi (é) este espaço de estímulo à escrita poética, de estar juntas, dizia Guaraná.  Ela nos agraciou tocando e cantando a cancão “Meia lua inteira” de Caetano Veloso, como forma de agradecimento ao Sarrau Poético.

 

“Meia lua inteira sopapo, na cara do fraco 

Estrangeiro gozador

Cocar de coqueiro baixo quando engano 

se enganou”..

 

Milena, trouxe- nos de presente um poema “o apanhador de desperdícios” de Manuel de Barros.

 

“Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo

(…)

Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdicios.

(…)

Queria que minha voz tivesse um
formato
de canto.

 

E sarau poético mais uma vez nos reaproximou, rompeu fronteiras. Trouxe-nos alentos.

Aprendemos umas com as outras, outras maneiras de abraços, afetos, de  não nos sentirmos tão sós. Palavras, suspiros, cantos, performances, risos, lagrimas,

Partilhas de vida! Quantas vivências! Gratidão às poetas, aos poetas de ontem e de hoje.  A cada um e um que através de suas vozes proporcionaram o encontro com a poesia,  em palavras de carne.

Para finalizar o Sarau do ano, Malu declamou o abraço de Carlos Drummond, findamos um ciclo de proximidade feita de palavras, abraçando-nos e desejosas de que os abraços cheguem a cada uma das pessoas que vivem neste planeta Terra.

 

DÁ UM ABRAÇO?

De repente, deu vontade de um abraço…
Uma vontade de entrelaço, de proximidade…
de amizade, sei lá!
Um abraço que eternize o tempo e preencha todo o espaço.
Mas que faça lembrar do carinho, que surge devagarinho,
na magia da união dos corpos, das auras, sei lá!
Lembrar do calor das mãos, acariciando as costas, a dizerem:
– Estou aqui!
Lembrar do enlaçar dos braços, envolventes e seguros, afirmando: – Estou com você!
Lembrar da transfusão de força,
ou até da suavidade do momento, sei lá.
Então, pensei em como chamar esse abraço:
abraço poesia, abraço força, abraço união, abraço suavidade, abraço consolo e compreensão, abraço segurança e justiça, abraço verdade, abraço cumplicidade?
Mas o que importa é a magia desse abraço,
a fusão de energias que harmoniza, integra o todo e se traduz no cosmos, no tempo e
no espaço…
Só sei que agora, deu vontade desse abraço:
Um abraço que desate os nós,
transformando-os em envolventes laços…
Que sirva de “colo”, afastando toda e qualquer angústia…
Que desperte a lágrima de alegria e acalme o coração…
Um abraço que traduza a amizade, o amor e a emoção.
E para um abraço assim, só consegui pensar em você.
Nessa sua energia, nessa sua sensibilidade,
que sabe entender o porque dessa minha vontade.
Pois então:
– Dá logo esse abraço!!!

 

Esse texto-síntese foi elaborado por Analba Brazão, Daiany Dantas e Malu Oliveira.

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