Guardo intacta em mim
A casa que mandei
Um dia
Pelos ares
E a reencontro em todos os detalhes
Intactos e implacáveis
Adriana Calcanhoto
De vez em quando nas caminhadas contemplando o mar e o céu, a imaginação é ativada e me ponho sem limites, sem controle a pensar, analisar e longe fico do lugar onde estou.
Outras vezes, revisito o passado, ou revejo os caminhos.
Segundo Barchelard em “A Poética do Espaço”, isso é o estado da “imensidão íntima” que nos habita, mas a dinâmica da vida diária, a rotina, nos aprisiona. Quando estamos no estado de solidão, a imensidão nos ocupa em forma de devaneios.
No estado de “imensidão íntima”, ando no sítio onde nasci e vivi, revisito caminhos ondulosos, de encantos verdes cercas com melão de São Caetano, matas com árvores de aroeira, ipê, que continham resinas nos troncos e que chamávamos de “lágrimas das plantas”. Comíamos com muito prazer e o sabor era incomparável.
O vento e o silêncio das matas exerciam um fascínio, uma sensação de plenitude e bem estar que até hoje sinto ao entrar num parque, numa floresta e vivo aquela sensação primeira, aquela alegria contaminadora de abrir os braços e de cabeça para o alto, rodar até cair embriagada de tonteira.
Nas secas, os caminhos eram povoados de garranchos cinzentos, mas a mata guardava o fascínio – o verde e o encanto continuavam.
As sombras e os ventos eram os carinhos e os aconchegos dos caminhantes para a escola rural sob o sol escaldante de 30 a 40 graus e de muita secura da terra.
Nesse momento, tenho o sentimento de reencontro com passado, povoado de grandes seres com quem convivi e descobri nos exercícios de leitura e um encontro com a inteireza da minha intimidade.
Meu pensamento foi ao tempo dos navios negreiros e refleti o tempo e os gêneros. Mulheres negras que vieram acompanhadas do seu pai, marido, irmão ou sozinhas.
Quanta violência ao serem arrancadas de uma cultura, viver em exílio forçado. Em terra e cultura diferentes, vivenciaram a estranheza, desenraizamento a rejeição e sobreviveram à infinita melancolia e tristeza da terra mãe distante.
As negras, na travessia do Atlântico, iam sendo vendidas e separadas dos seus, tomando o rumo diferente de Sul e Norte além de apanharem de rei e de chicote.
Em terra firme trabalharam nos canaviais, nos garimpos do ouro, ama de leite e valentemente foram quilombolas.
Como escravas muitas foram colocadas no ganho e “autorizadas” a circularem para a prostituição para garantirem renda para os “seus” e “seus” donos (as).
Ao mesmo tempo, as mulheres dos colonizadores portugueses, igualmente viveram no exílio, mas em condições sociais e materiais diferentes, não foram vendidas e separadas dos seus familiares.
A senhora de escravos, no entanto não saia sozinha, era reprimida, desrespeitada. Às vezes tinha que ir para os conventos, quando não casava com o marido arranjado e/ou por desilusão amorosa.
Outras, não docilmente seguiram o destino que outros escolheram para elas. Disseram não à condição de esposas, não tiveram os filhos, muitas foram consideradas párias quando procuravam a vida que queriam e tornaram-se escritoras, compositoras, cantoras, artistas.
Foram as europeias imigrantes, as brasileiras e as negras que trabalharam nos cafezais, nas indústrias têxteis. Concretamente se constituíram as verdadeiras construtoras do parque industrial brasileiro junto com os operários e que por muito tempo ficaram invisíveis na História. Tempo de silêncios e invisibilidade. A fala desautorizada.
Esse tempo histórico começa a ser reconstruído e recontado através da história oral, muito utilizada a partir do final dos anos 60 com as mulheres organizadas, participando da experiência ou pesquisando e conquistando a fala pública construindo a narrativa de suas próprias vidas. Esse foi o tempo da grande aventura de escutar, perscrutar e romper com silêncio dos arquivos, buscar as fontes no cotidiano e registrar a memória dos excluídos da história.
Os estudos sobre o tempo, iniciados no século XVIII que questionavam o “instante” como conceito de tempo fundamental e apresentavam a sucessão temporal e a memória como elementos constituintes do tempo histórico, social e cultural permitem a escritura da história das mulheres como sujeitos políticos.
A vida é atravessada pelos diversos tempos. O tempo do corpo é impregnado pelo cotidiano que é outra dimensão do tempo.
O tempo de infância que no processo tecnológico sofisticado já não tem os mesmos significados quanto à invenção dos próprios brinquedos pelas próprias crianças e que por sua vez eram tão diferentes dependendo do lugar de onde brincavam, da classe social e da etnia a que pertenciam.
O tempo de mulher que espera a menarca, que se prepara para a iniciação sexual, para os prazeres.
Tempo da gravidez, do dividir o próprio corpo com outro, de nutrir e de desligar o cordão umbilical física e socialmente.
Tempo da maternidade, tempo do cuidado recheado de perenidade.
A menopausa tempo de maturidade e de revolução interna do corpo com o descompasso hormonal e que hoje já é tema de estudos nos diversos campos do conhecimento.
O tempo da velhice, período de perdas do vigor físico e da importância social. Tempo de resistência pela conservação e respeito pela sua dignidade. Tempo de balanço da existência.
Na vida social o tempo é lento e essa lentidão faz com que a sociedade viva uma aceleração nos campos da tecnologia e economia e em termos das mentalidades (maneira particular de pensar e de sentir de um povo), a presença de comportamentos que retrocede aos costumes antigos, ultrapassados. Ainda se constata relações patriarcais, de opressão e violência contra mulheres. O que acontece é que as mudanças no nível do mental e da cultura são muito mais lentas.
Ao longo da história da humanidade foram sendo incorporados os conceitos de mudanças e processos. As lutas sociais alimentaram as teorias sociais e a dimensão dos direitos e rompeu com a noção de totalitarismo. As duas grandes guerras provocaram destroços e atrocidades que deixaram as pessoas com lesões físicas e pisco emocionais, ao mesmo tempo que produziu movimento social comprometido com lutas por direitos igualitários.
A década de 60/70 a lógica do público e do privado começa a se romper e a ser discutida no sentido de mão dupla. Esse processo tem se fortalecido muito e pode trazer para a visibilidade muitas misérias e desrespeitos da vida privada contra os mais fragilizados.
A educação, a inserção crescente das mulheres em todos os níveis da escolaridade tem contribuído para o desenvolvimento da autoestima pessoal das mulheres e mudar a condição social destas na sociedade brasileira.
Os movimentos, as articulações possibilitam o intercâmbio nacional e internacional das mulheres e contribui para monitoramento e construção de políticas públicas. Um outro tempo se construiu no cotidiano de todas com a presença nas lutas em busca da promoção da equidade e igualdade e a garantia que seja ela quem controle sua própria sexualidade.
A plena participação das mulheres em igualdade de condições na vida civil, cultural, econômica, política e social poderá ser o tempo histórico social que estar por vir quando os direitos humanos da mulher, das velhas, das meninas e das jovens estejam respeitados integralmente. Esse é um desafio diante de um tempo onde a fluidez dos gêneros é debate cotidiano desafiando fronteiras.
Candida Moreira Magalhães aposentada e ativista feminista. É formada em Serviço Social pela Universidade Federal do Ceará e em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem uma vasta experiência na Previdência Social. Foi professora na Universidade Estadual da Paraíba, dedicando-se aos ensino de Políticas Públicas, Orientação Pedagógica e Estágio. Trabalhou na Fundação Margarida Maria Alves, na Cunhã Coletivo Feminista e Secretaria de Estado da Mulher e Diversidade Humana, Paraíba, como educadora e advogada.