Com um cartão magnético abri a porta do quarto. Entrei, um susto! Um quarto de “madame”! Não que ele fosse chique, com requintes de nobreza. O quarto-suíte, por cinco noites, era totalmente meu! Atirei-me sobre a cama, o corpo ficou pequeno sobre ela. Espreguicei-me todinha. Agora tinha um quarto todo meu. Já não era mais beliche, outros pés me chutando, outros corpos puxando os lençóis, outras cabeças roubando os travesseiros… brigas, gritos, raivas no puxa daqui, puxa dali. No inverno gelado daquelas paredes sem calefação, os corpos das manas esquentavam-se mutuamente!
No verão, os corpos pegavam fogo, suadeira! O incômodo, a revolta da pobreza, da maternidade de todos os anos de minha mãe. Adulta forçada, de lavadeira de roupas, do limpa-limpa de todos os dias, não é vida de menina.
“Quando crescer, nunca vou ter filhos”, eu menina, só queria brincar, e ter uma cama para me mover, bailar sobre ela, amassar os lençóis de puro algodão. Podem até me chamar de egoísta, não me importo.
Agora sou madame Toscana. No meu quarto de madame tudo é bonito. Um majestoso espelho! Vejo um corpo de 56 anos, traços do tempo vivido. Por muitos anos tive medo dos espelhos. Imagem, verdades reveladas, um reflexo de mim mesma, não quero ver o que vejo. A silhueta se perdera! Espelhos também mentem! Superfície, Casca, Sombras. Quando menina, costumava me olhar nos reflexos das panelas de alumínio areadas com o Bombril ou através de um pedaço de vidro velho, pendurado em algum lugar da nossa velha casa.
No quarto de madame, há uma cadeira de elegância fina. Por alguns minutos, quis tomar sua forma, cor, postura. Não era para ninguém se sentar sobre ela, apenas estava ali a ser admirada!
Finalmente, uma cama toda minha. O sonho tornou-se realidade. E nela, uma intimidade só! Debaixo ou sobre os lençóis, meu corpo se enaltecia. Os abajures de luzes sombrias sobre os criados-mudos me levavam a um tempo não vivido, imaginável. Sobre a escrivaninha de madeira, um caderno de capa de couro vermelha e uma caneta de pena, como nos filmes de antigamente. Coisa fina! Páginas em branco… entre uma página e outra há algumas fotografias de outras não madames.
No guarda roupa da Madame, peguei a jaqueta preta de couro, o vestido de bolinhas verdes, o xale para proteger a cabeça do vento naqueles dias bastantes frescos. Eu vestida à italiana. Na companhia de uma outra madame italiana, na garupa da sua lambreta vermelha, o vento soprando o vestido, percorríamos a estrada de St. Geminiano, Voltaire, Siena, Florença … Coisa de cinema! Em uma taberna de paredes poéticas em St. Geminiano degustávamos os vinhos da estação. Entre um copo e outro de vinho, lembrei-me de um fragmento da crônica “Uma hora em San Giminiano”, de Cecília Meireles.
“A arte de viajar é uma arte de admirar, uma arte de amar. É ir em peregrinação, participando intensamente de coisas, de fatos, de vidas com as quais nos correspondemos desde sempre e para sempre. É estar constantemete emocionado – e nem sempre alegre, mas ao contrário, muitas vezes triste, de um sofrimento sem fim, porque a solidariedade humana custa, a cada um de nós, algum profundo despedaçamento”.
Depois de um dia de passeios de uma cidade a outra, já era noite quando regressei para o quarto de Madame. Agora só! Estava só! Não! Estava comigo. Entrei no vasto mundo do banheiro. Uma banheira só para meu deleite. Joguei- me dentro dela como uma baleia em pleno mar! A temperatura das águas com os aromas navegando sobre meu corpo… lá fora o vento frio assobiava. Os pinheiros balançavam como se estivesse dançando. Eu estava aquecida, sentia-me em mundo desconhecido, porém em pleno gozo! No celular ouvia músicas italianas e entre uma, duas taças de vinho fui me deixando levar por aquela atmosfera de outono.
Na companhia das amigas, depois das horas entregue ao divã da banheira, saboreávamos os pratos da cozinha italiana: o risoto de taturfo, torteline de abóbora, tiramissu, panacota.
Com o “vinho santo” brindávamos à amizade.
A luxúria da Madame Toscana durou apenas cinco dias.
É hora de pegar a estrada.