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Escritas de finais de tarde

Joana Belarmino de Sousa é uma “mulher de muitas camadas”, uma mulher cega, mãe de duas meninas, avó de dois meninos e uma menina,  escritora, intelectual, ativista, professora, uma pessoa encantadora, simples e de muitos talentos. 

Na condição de mulher com deficiência visual, ela compreende que “a mulher cega é uma militante de todos os dias diante das desigualdades vividas no cotidiano”. Por isso, ela diz que a luta anticapacitista é uma luta cotidiana.

Nós, do Terra Literária, no dia 2 de fevereiro, fomos agraciadas pela oportunidade de conhecer um pouco da vida e das escritas de “finais de tarde” de Joana, horário em que prefere escrever, liberando sua imaginação e criação literária para dar vida a histórias e personagens que nos cativam. 

Na entrevista, ela revela ser uma pessoa literária, muito exigente consigo mesma. Sua relação com os livros e a literatura começou na infância. Aos nove anos, ela criava suas próprias “fotonovelas” e lia para seus coleguinhas na escola. Por volta dos quinze, dezesseis anos, escreveu seus primeiros contos e crônicas que lia para grupos de adolescentes e jovens cegos.

Desde então, nunca mais a literatura saiu dela, embora, em alguns momentos de sua vida, a experiência da escrita tenha ficado suspensa. Havia outras prioridades entre a vida acadêmica e em família que demandavam sua atenção. “A literatura é um espaço que me tira do chão, que me leva para outros lugares”, relata.

Publicou livros infatojuvenis, crônicas e contos em coletâneas individuais e com outras escritoras e escritores.

Aos vinte anos de idade, lançou seu primeiro livro infantojuvenil: O patinho criança. Anos depois, vieram outros: Dartanham: um gato com gosto de pinto, publicaço pela Editora Moderna (SP), Era uma vez uma Vírgula, lançado pela Ideia (João Pessoa, PB).

Participa do Clube do Conto da Paraíba, que tem encontros semanais em João Pessoa. Foi a participação neste espaço, em 2017, que a levou a escrever o romance de ficçao Tia Lila.

Parte de suas crônicas e outros textos se encontra no blog pessoal e seus livros podem ser adquiridos através do seu instagram.

Joana, foi uma tarde muito prazerosa este nosso encontro com você aqui no Terra Literária.

Agradecemos por compartillhar conosco o conto “Ocaso”, de uma beleza e dramacidade que nos convida a caminhar junto com seus personagens e a adentrar em seu cenário.

Quer saber mais? Ouça o podcast!

 

Ocaso

 “Espera por mim”, gritou ela, mas não sabia para quem gritara, porque não tinha estado ninguém ali. Mesmo assim, emitiu mais uma vez aquela estranha ordem, correu a pegar a bolsa, abriu a porta e saiu ao acaso.

Caminhou primeiro com pressa, a olhar para os lados, e, na esquina, soube que já não encontraria nada, nem ninguém.

E viu, de repente, na porta da padaria, um velho a segurar um saco pesado de pão de anteontem, caminhando vagarosamente para a rua.

Sem dizer nada, sem sequer o olhar, regulou seu passo com o dele, porque mesmo que o seu espírito ansiasse por pressa e movimento, precisava apossar-se do caminhar daquele velho, precisava experimentar essa fatia de vida que conquistara, assim, no ocaso.

E o velho, que todos os dias ia à padaria buscar o pão de anteontem, que a bondosa caixa guardava ciosamente para aquela fome, o velho soube que algo havia alterado a escrita daquele seu princípio de noite.

Soube-o, não por ter olhado para ela. Soube-o, pela ciência que tomava, pouco a pouco, do caminhar a seu lado, do ritmo dos pés dela, as chinelas Havaiana chiando mais rápido que o arrastar da velha alpercata dele, como se o passo dele, inconscientemente, imprimisse no meio-fio a fala roufenha “espera por mim”; como se o passo dela, regulado com o dele, dissesse ao meio-fio uma silabaria nova que ele não conseguia ainda traduzir de todo.

E aquele diálogo de pés desbravou as ruas movimentadas da cidade, sem que olhos se vissem, sem que braços se tocassem, mesmo nos rincões mais apertados de espaço.

E finalmente encontraram a morada do velho, num arremedo de rua, fingimento de casas, forradas de lixo por dentro e por fora.

E foi nesse momento que ela surpreendeu um resto de alegria nos olhos do velho. E, naquele relâmpago, viu mais do que alegria. Viu que o velho tinha sonhos.

Sonhos ternos, quentes, sonhos guardados em romances de amor, que ele lia, todas as noites, na sua tosca mesa de caixote, sonhos que ele embrulhava no cheiro do pão de anteontem, sonhos que ele ofertava à bondosa caixa da padaria, com a beleza de um lirismo que já não existia mais.

E quis rapinar os sonhos do velho, ali mesmo, antes que ele adentrasse o seu arremedo de casa.

E apossou-se da sacola do pão de anteontem, que resvalou para uma possa de lama. E fez escurecer a vista do velho, e deu-lhe tremura aos pés e às mãos, e deu-lhe a agonia da morte, e enquanto a massa do pão unia- se à água suja da rua, engoliu em silêncio todos os sonhos do velho.

O conto ” Ocaso” encontra-se no livro “Já não há golfinhos no Tejo”, publicado  em 2020, pela editora Penalux (SP), em 2022, foi publicado em braille, pela imprensa braille do Instituto Benjamin Constant (RJ).

 

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