Malu: Olá, Cyane! Seja bem-vinda! É uma alegria tê-la conosco no Terra Literária.
Cyane: Agradeço o convite do Terra Literária, particularmente, porque vivemos um momento em que propagar a arte e a literatura é um modo de resistir ao obscurantismo vigente.
Malu: Conta-nos um pouco sobre tua vida. Quem é Cyane Pacheco?
Cyane: Alguém que se faz essa pergunta diariamente, esperando múltiplas respostas. Nasci no sertão pernambucano, no município de Arcoverde e, seguramente, remanesce de lá todo o universo ético e estético que pude construir nos meus 57 anos de vida. Desde criança, procuro apurar meu olhar, relevando o outro, em sua essência. Aprendi, através das experiências vividas, a me desfazer do medo da solidão, da sedução da vaidade e da insânia do poder. Para compreender as artes e a literatura, exercitei as travessias dos inúmeros desertos e mares. Hoje, afirmo que descobri o que me move e para o qual vim ao mundo: criar e sobrelevar, cada vez mais, o amor e a amizade. Nascemos e morremos muitas vezes, numa só existência.
Malu: Você é formada em Artes Plásticas. Desde quando a arte apareceu na sua vida, ou seja, a arte sempre esteve/está presente na sua vida?
Cyane: Sim, sou graduada em Artes Plásticas. A arte sempre esteve presente em minha vida. Tive a sorte de nascer em uma família progressista, que me proporcionou, desde que nasci, o acesso à música, ao cinema, à pintura, ao desenho, ao teatro, mesmo vivendo em uma cidade do interior, onde esses recursos eram escassos. Minha primeira memória foi aos dois anos e, desde lá, a arte e a literatura estão presentes. Nessa idade, o que eu mais sonhava era em aprender a ler, embora houvesse uma regra que ditava a idade de acesso à escola. Até os seis anos, quando aprendi a ler, eu acordava diariamente, mais cedo do que os meus pais, e escrevia detrás das portas da casa, as três primeiras letras do alfabeto e as aguava com um regador de brinquedo. Com esse gesto, eu imaginava que as letras cresceriam, dariam frutos (como as laranjeiras do quintal) e, ao comê-las, imediatamente, eu poderia desvendar o mistério da leitura. Acredito que esse olhar sobre o mundo desencadeou a necessidade da criação.
Malu: De onde vem a inspiração?
Cyane: A inspiração vem dos lugares mais heterodoxos: das memórias infantis, do enredo das brincadeiras, do alumbramento diante dos lugares extraordinários do sertão, dos fatos curiosos do cotidiano, dos livros lidos, das dores havidas, do arrebatamento das paixões, da estranheza e sincronicidade de alguns fatos, da observação da natureza humana com uma lente delicada e minudente, da aleatoriedade dos acontecimentos, das experiências insólitas, da pesquisa entusiasmada dos assuntos que constituem o arcabouço que escolhi para ser o eixo da minha vida. Recorro ao aprendizado com os grandes mestres, à árvore genealógica e particular dos grandes artistas, de todas as épocas, as escolas, as técnicas e as linguagens que acesso através dos livros ou das visitações aos museus, nos lugares que conheci, são luminares que me afetam e me fazem dar um passo além.
Malu: Como você definiria sua arte, se isto é possível?
Cyane: Aprendi há algumas décadas, que, para criar, perguntar e responder através do uso da imagem ou da palavra, urge enfrentar o horror do mundo, responder às questões fundamentais da condição humana, esquadrinhar o tempo vivido. Iniciei minha prática artística com o desenho, que me subsidiou o espaço da palavra. Gosto de dizer que a imagem é a superfície do signo, a pele da palavra, não é o objeto a que se refere, nem aquilo que o cérebro parece indicar de imediato. A imagem é o que provoca os sentidos, o corpo e através da qual, constituímos nosso universo, tecendo, na impermanência, o que somos e quem são os outros. Semente e árvore. Fata Morgana dos devires, imaginal e suspensa fantasia. Invólucro do vazio, epifania, estrela distante e palavras vestidas de todas as línguas. A imagem é o fantasma, nós o vemos ou não. Durante o processo de criação, relevo a delicadeza do traço e da escritura. Jamais titulei uma obra, desse modo, a interpretação do observador é desempenhada com mais liberdade – condição inequívoca nesse diálogo.
Malu: Como se dá o processo de criação/produção? Você têm um atelier?
Cyane: Tive vários lugares de criação, desde um amplo atelier, onde havia artistas residentes ao que hoje trabalho e denomino Atelier Portátil, pois foi estruturado na casa onde me hospedo, desde o início da clausura imposta pela pandemia. No início desse processo, com os mercados fechados e o lugar exíguo de trabalho, utilizei o que dispunha e fiz algumas séries de colagens e assemblages. Reunir revistas, recortá-las e dispô-las, como um puzzle imprevisto, foi o modo lúdico que encontrei para atravessar esse momento intricado.
Malu: Geralmente, suas artes são tematizadas?
Cyane: Reflito sobre as questões que mais me inquietam, como por exemplo, a impermanência dos corpos, as relações humanas, a vertigem dos devires, as mitologias que se abeiram daquilo que vivo, enfim, através dos signos antepostos (olhos, anzóis, facas, asas, fios, chaves, lágrimas e outros elementos). Gosto de contar uma história, enquanto desenho, nunca sei exatamente como será o resultado. A primeira vez que fiz uma série tematizada foi recentemente, sobre um tema que considero crucial para nossas conquistas: a legalização do aborto. Confesso que foi um dos trabalhos mais prazerosos, do ponto de vista da execução e do resultado, no Atelier Portátil. A princípio, seria menos de uma dúzia de colagens ilustrativas, que se desdobraram, exclusivamente pelo desfastio dos dias e do aprofundamento das análises sobre o tema. Valorizo a liberdade da criação, do mesmo modo que a estendo para todas as vertentes da existência.
Malu: Tenho observado em algumas de suas artes a representação do corpo. Você poderia falar mais sobre isto?
Cyane: Sim, o corpo, enquanto temática artística e literária, é um axis da minha criação. Desenvolvi, há mais de uma década, uma série de desenhos, gravuras e esculturas a partir das ilustrações de um livro de medicina, herdado do meu avô. Durante minha infância, aquela iconografia me assustava: eram corpos humanos desdobráveis, que ilustravam os sistemas circulatório, muscular, ósseo; as vísceras e os órgãos, imagens assustadoras para uma criança. Recorri ao sombroso da infância, para refletir sobre a arte moderna, cuja morte foi decretada pelos mais diversos críticos de arte, no entanto, atua como um cadáver insepulto, onde a exuberância criativa ainda pulsa. Escrevi uma monografia sobre esse argumento, após a conclusão de um curso acerca da pós-modernidade.
Malu: Qual a relação de sua arte com o feminismo? Você tematiza as questões que afetam a vida e os corpos das mulheres, certo?
Cyane: Considero o feminismo inseparável de quaisquer discursos acerca da arte, da literatura, dos diálogos regulares, das práticas cotidianas, enfim, da vida. Como a maioria das mulheres, conheço o mal que significa o patriarcado que se insurge em todos os territórios possíveis, desde os primórdios da história. É um mal a ser combatido diuturnamente, sem trégua, seja através da arte ou de outro meio acessível. Nessa série, tematizei e localizei a mulher, em um lugar assertivo e desafiador, certamente pelo exemplo das sertanejas e outras referências femininas que conheci no percurso da minha existência. Sempre tive uma orientação de esquerda, no que a palavra encerra, logo, me volto para a luta em defesa da liberdade. Hoje, o meu olhar dói quando abro a janela para o mundo, particularmente para o país em que vivo; quando minha indignação se assoma, pela visão da destruição promovida pelos fascistas, perversos, mentecaptos que o dirigem, com a coadjuvância da classe média, essa estrutura que naturalizou a escravidão, por exemplo, e continua a fazê-lo, numa exploração desmedida. A vulgaridade, aliada à hipossuficiência intelectual do governante e seus aliados, encoraja o açoite às causas das minorias, principalmente à causa feminista, o que me faz permanecer atenta e aguerrida.
Malu: Qual a relação de sua arte com a literatura e a palavra/linguagem?
Cyane: Creio que comecei a desenhar para acessar o esqueleto da palavra, seu alicerce, seu sentido. Há ocasiões em que o desenho parteja o texto e noutras, o texto gera a imagem.
Malu: Tive acesso outro dia a uma de suas poesias. Qual o lugar da poesia na sua vida? Você escreve constantemente?
Cyane: Escrevo constantemente, as minhas escrituras são boias que acesso, quando me encontro nos mares bravios do pensamento. Ultimamente, estou corrigindo e relendo o que escrevi nos últimos dois anos, enquanto isso, sigo buscando uma intimidade maior com as palavras, sinto que esse é um exercício primordial até meu último fôlego.
Malu: Você poderia compartilhar uma de suas poesias conosco?
…
De Longe
Parecia um barco
E não era
Nem o parto da primavera
Folha de papel
Ou avião
Mãos acenando insones
Memento na escuridão
Desejo de vera
E de vida
Morte à mingua
Suicida
Esquecimento ou perdão
Lamento das fomes
Língua desaparecida dos homens
Pela hora da morte
Ou da despedida
…
…
Vela
Vela
Vela
Como se fosse um corpo
Como se voltasse à vida
Como se não parecesse morto
Vela
Vela
Vela
Acesa noite que o silêncio desvela
Luminar dos pés e do açoite
Incêndio dos desejos mornos
Vela
Vela
Vela
Singrando os mares do desespero
À deriva agarrada à balsa
Engolindo água e distância
Vela
Vela
Vela
Que desiste se não ressuscita
Que insiste em chamar amor
Que afoga os olhos no sal
Vela
Vela
Vela
Naufrágio lento e anunciado
Barco de papel rasgado
No espelho d’água dos sufrágios
…
Malu: Você consegue avaliar o impacto da sua arte para fora? Digo em termos de receptividade.
Cyane: O retorno do que crio e ponho no mundo me alegra, principalmente por não se situar estritamente na esfera mercadológica, mas sobre-excede e cria diálogos coletivos, onde o capital é irrelevado.
Malu: Você vive do trabalho de artista? Suas artes são comercializadas?
Cyane: Minhas obras são comercializadas, não vivo estritamente do retorno econômico das minhas obras, embora esse seja um complemento significativo.
Malu: Para finalizar, você gostaria de compartilhar algo mais conosco, fique à vontade.
Cyane: Cada vez mais, me agrada o trabalho coletivo, que reflita o momento político do país. É importante a resistência através da porta da estética, estamos todos correndo um risco iminente, de vermos nosso patrimônio cultural ser destruído pelos parvos e cobiçosos. Devemos, pois, propagar nossos saberes e denunciar, onde for possível, o horror estabelecido.
Malu: Cyane, muito obrigada por compartilhar suas experiências como artista plástica, algumas de suas obras artísticas e escritas literárias aqui, neste espaço. Foi uma satisfação enorme conhecer um pouco da sua história e este maravilhoso trabalho que você vem fazendo, principalmente, a valiosa contribuição à sociedade brasileira, numa arte e escrita engajada.