Malu: Civone, muito bem-vinda! É uma alegria tê-la conosco no Podcast da Terra Literária.
Civone: Olá, Terra Literária.
M: Você poderia nos falar um pouco sobre quem é Civone Medeiros?
C: Eu sou poeta. Trabalho com diversas expressões artísticas para trazer esta poeticidade para o cotidiano. Não tenho formação acadêmica, mas sou um objeto de estudo em alguns TCC universitários, por aí. Eu levo a poesia para a instalação, para intervenções urbanas e trabalho com a curadoria da poética visual. E isto tem rendido alguns estudos.
Sou Potiguar, nascida no Rio Grande do Norte, descendente de duas ramificações de povos originários potiguaras e tabajaras daqui do Nordeste. Me identifico como mulher e poeta, de raízes indígenas entre outras mestiçagens.
M: Desde quando você começou a escrever poesia? A poesia sempre esteve presente na sua vida?
C: Eu comecei a escrever aos seis anos de idade e fiquei muito encantada quando minha professora disse: “olha, isto é poesia!”. E eu disse: “professora, o que é isto? É bom?”. Então, ela disse: “poesia é contar, marcar a história”. Meu primeiro poema eu guardei por muito tempo e eu dediquei a minha mãe, o amor maior que conecta como pessoa. A personalidade que mais firma dentro da relação que eu vivi e vivo é a imagem da mãe, não é? E hoje eu também me ressignifico, como sendo de uma família matriarcal e nada mais justo que começar a escrever e me inspirar neste ser mulher-materna.
A partir dos 16 anos, eu virei uma máquina de escrever. Tudo que eu via eu escrevia, pelos cotovelos: como um diário, um desabafo. Na época eu lia o mundo e transcodifica-o. Lia muito! Sou filha de uma professora do Estado. Ela trabalhava com adolescentes e muitas vezes eu a ajudava na sala de aula, como também a ajudava nas tarefas domésticas e artesanais, quando chegava em casa. E o mundo das letras, dos livros, de viajar pelas histórias sempre me encantou muito. Eu lembro que li uma primeira coleção de livros, bem feita, de uma editora que meu pai ganhou, quando ele trabalhava como mecânico na Volkswagen. Eles doavam, todos os anos, livros e enciclopédias aos seus trabalhadores e isto eu achava fascinante. Mesmo vivendo em uma situação de humildade, nós tínhamos acesso a estes livros e, através deste universo, nós saíamos do nosso habitat e íamos para muitos lugares! Esta primeira coleção era de Monteiro Lobato. Eu me lembro que viajei para a Grécia; viajei para aquele mundo fantástico do Sítio do Pica-pau Amarelo. Cada episódio que lia e via, eu escrevia. Mas não para escrever sobre as coisas que eu lia, mas escrever minhas expressões inspiradas nestas leituras. E isto se tornou meu Leitmotiv[1] e marcar minha existência a partir do que eu vejo, desde a adolescência. De lá para cá, fui me envolvendo com outras questões como a visualidade da palavra. Eu sempre tive um pensamento muito imagético. Quando eu falo, eu vejo palavras do ar. Elas vêm se formando. E sempre fui muito apaixonada pela língua; pela forma de se escrever, como se concebe as palavras, os radicais livres e tal. E isto me encantava como quem burila em um laboratório. Com um tempo aprendi que gosto muito de neologismos. E, para isto, você tem que mergulhar na formação das palavras. Gosto muito de aprender outros idiomas, porque isto enriquece nossa bagagem visual, emocional, mental. A palavra é meu modo de viver, de me expressar! Levo isto para outras estéticas artísticas exatamente por perceber que em tudo há poeticidade: no drama e na dor, no desejo ou no anseio, tudo é poético para mim. Nas artes também que eu me expresso. Com um tempo eu fui para o movimento estudantil, sempre lutando por questões de inclusão. Depois fiz meu recorte específico para o feminismo e a palavra sempre como guia. A imagem como palavra, a palavra como uma imagem. E a alteridade da narrativa, assim a gente pode se colocar no mundo a partir de vozes dissonantes ou outras vozes não dissonantes.
M: Civone, que coisa linda de ouvir um pouco sobre sua trajetória de encontro com a palavra, com a escrita, com a poesia. A poesia vem de dentro de você. A poesia está no seu corpo, no seu sangue, perpassa por toda sua existência no mundo. Está nas suas andanças, no seu olhar pelo/sobre o mundo, nas suas transgressões. Quando li seus poemas nas “escrituras sagradas”, me veio uma inquietação para saber de onde vem esta nomenclatura. Conta-nos sobre as “Escrituras Sangradas”.
C: Este nome é fruto de uma inquietação. Escrituras sangradas são dois livros em que eu publiquei meus poemas. Por que “Escrituras Sangradas”? Visualmente como artista, eu tenho um afeto muito grande pela escrita e pelo sangue, como um ser que sangra e escreve(-se). Quando eu não tenho a palavra para explicar nada, eu uso a dialética e a imagética do coração. O termo “Escrituras Sangradas” também está na minha raiz familiar judaico-cristã ocidental. Eu cresci dentro de uma família com esta tradição religiosa e isto tudo se bifurca e atravessa minha vida. E o meu feminismo hoje, por exemplo, porque a primeira vez que eu tive um questionamento profundo sobre o que é ser mulher e sobre ser incluída, nesta cultura patriarcal foi a partir desta religiosidade que eu vivia. Minha mãe me conta que estava uma vez na igreja católica e o padre dizia “e Deus enviou seu único filho” e, nesta hora, eu levantei a mão e as coloquei nas minhas partes íntimas e disse: “mas eu não sou um meninoooooo”, interrompendo a missa. Foi um escândalo. Minha mãe puxou-me para fora da Igreja. Este questionamento me perturbou muito e eu fui muito repreendida desde aquele momento, porque não se questionava a palavra de Deus. E eu dizia, mas eu não sou filha dele? E quando via o coração de Jesus, eu me perguntava: por que o meu coração não é sagrado? E eu nunca tive esta resposta. Quando comecei a escrever, nas rebeldias da adolescência, sentia muitos atravessamentos sobre o meu feminino. Me lembro que levei uma surra porque eu menstruei no meio da rua. E eu não sabia o porquê. Me perguntava por que este sangue não é sagrado? Por que não abençoada? Também sou filha da divindade. Então, a partir de uma rebeldia genuína, a partir dali, eu disse para mim e para o mundo que meus escritos são sangrados. Minha escritura tem sangue. E o meu coração é sagrado. A capa do segundo livro sou eu como modelo da própria imagem do Sacré Coeur de Civone. E isto o tempo todo me retroalimenta. E as “escrituras sangradas” surgem destas vivências também.
M: Quantos livros você já publicou? Como é a recepção de sua escrita em Natal, no Brasil?
C: Tenho dois livros publicados… O primeiro livro das Escrituras sangradas, com o subtítulo “Tosca e fatia de escrivinhaduras”. Natal é uma cidade pequena e muito provinciana em muitas coisas. A cultura aqui, para a gente ter acesso a livros usados, era através de Sebos e, não obstante a isto, era o lugar onde circulavam os escritores, artistas, poetas aqui na cidade. E eu como adolescente fuçava estes lugares, e ouvindo estas pessoas e questionando também a ausência da mulher nestes círculos. Nestes espaços de Sebos, comprando livros, eu era benvinda, mas quando disse uma vez para um poeta da época que queria escrever livros de poesia, ele riu na minha cara e disse para eu crescer. Isto me irritou muito e me tornou ainda mais rebelde. Então, eu disse “não, mas é assim que eu vou me colocar na vida”, como a própria Simone de Beauvoir fala “não se nasce mulher, mas se torna mulher”. Daí, eu fiz esta afirmatividade com as “escrituras sangradas”. Neste livro de “Toscas fatias”, eu já sentia que haveria um desdém sobre minhas escritas, por ser de mulher. Eu não acredito em literatura feminina e nem masculina. Existe literatura, poesia! E esta é a história das “escrituras sangradas”. Eu sempre senti que era um espaço de fala inventado para/por mim, já que ninguém abriria esta oportunidade. O primeiro livro tem mais de sessenta poemas e, até hoje, significam muito para mim. É lido e estudado por outras pessoas. O livro 2 das Escrituras sangradas, com o subtítulo “Ave de Arribaçã ou A propósito de Viena e outros Ondes”, já é um apanhado de poemas de 2000-2009. Dentro dele, tem outros livros, como uma formação da própria Bíblia Sagrada.
Eu me descobri como um portal, acho que todas pessoas são. Hoje eu sou uma contagiadora de outras pessoas e tenho muito cuidado com o que transmito como ativista e artivista. Eu tenho muita responsabilidade com o que eu vou incentivar às pessoas a se rebelarem. Hoje em dia eu escrevo muito menos, não paro, eu escrevo menos poesia, mas vivo mais poeticamente. Mas nem tudo é azul ou cor de rosa, tem todos os primas do arco-íris. Eu gosto de lembrar que eu não sou a dona das palavras, eu sou uma usuária. Eu sou apenas uma mensageira da mensagem. A mensagem do que eu propago e como eu propago é o que é importante. “Eu sou o cavalo de minhas ideias e a mula de minhas batalhas”. Isto está dentro das minhas poesias e como mulher ativista social, de pleitear as diferenças como a nossa maior riqueza. Poetas são mensageiras(os) das deusas e dos deuses.
M: Sua história me faz pensar sobre o feminismo, o teu reencontro com o feminismo, poesia com o feminismo e o feminismo com tua poesia. Um reencontro que passa por tua trajetória de vida, que atravessa a adolescência, de uma menina rebelde, questionadora, transgressora e como você traz isto bem forte na poesia. Traz uma releitura do sagrado na tua vida e se manifesta no corpo da mulher. Gratidão, Civone por este encontro! Agora te convido para soltar o verbo da palavra.
ZUGVOGEL ODER APROPOS…
Die Bahn fährt immer
Hin und zurück
Ich gehe
Immer
Hin und her und zurück und hin…
Ich gehe
Ich bin
Die vier Jahreszeiten sind Ich
Ich bin wie die Bahn
Ich bin wie trockene Blätter
Ich bin wie der Winter
Ich bin wie der Blut
Ich gehe und gehe und fliege und gehe…
Ich lebe
Ich liebe
Ich fliege
Immer
Von mir für die Welt
Ohne Ende…
Ich bin wie das Zink
Ich bin wie das Wasser
Reise um die Welt
Wiener Spielzeit
Ich bin wie der Winter
Ich bin alle Zeit
Ich bin wie das Wetter
Ich gehe in Zickzack
Ich bin eine Gestalt
…und ich fliege und gehe und fliege und gehe immer
AVE DE ARRIBAÇÃ OU A PROPÓSITO…
O trem anda sempre
Ida e volta
Eu vou
Sempre
Ida e ida e volta e ida…
Eu vou
Eu sou
As Quatro Estações eu sou
Eu sou como o trem
Eu sou como folhas secas
Eu sou como o vento
Eu sou como o sangue
Eu vou e vou e vôo e vou…
Eu vivo
Eu amo
Eu vôo
Sempre
De mim para o mundo
Sem fim…
Eu sou como o zinco
Eu sou como a água
Volta ao mundo
Vienense temporada
Eu sou como o vento
Eu sou todas as horas
Eu sou como o tempo
Eu vou em ziguezague
Eu sou um vulto
…e eu vôo e vou e vôo e vou sempre
ARBÍTRIO
Vim aqui ditar uma bíblia
Quem quiser que lembre
Quem quiser que esqueça
Quem quiser leia
Quem quiser ignore
Quem quiser aclame
Quem quiser reclame
Quem quiser odeie
Quem quiser ame.
M U L H E R
Grita e Rouca-se
Ri e Leve-se
Pensa e Texta-se
Chora e Seca-se
Lambe e Molha
Morde e Marca
Fuma e Baga
Sua e Lava-se
CICLO E SANGUE
AMORAÇÃO
AMAI-AME-AMEM
AMEMO-NOS
UMAS AOS OUTROS
OUTROS AOS OUTROS
UMAS ÀS UMAS
OUTROS ÀS UMAS
UMAS ÀS OUTRAS
AMEMO-NOS
UNS ÀS OUTRAS
OUTRAS ÀS OUTRAS
UNS AOS UNS
OUTRAS AOS UNS
UNS AOS OUTROS
AMEM!
[1] O termo Leitmotiv, que em português pode ser traduzido como “motivo condutor”, consiste em um tema ou ideia musical que aparece constantemente no decorrer de uma obra com o objetivo de associá-lo a um personagem, objeto ou ideia. Disponível em: https://radios.ebc.com.br/caderno-de-musica/edicao/2016-02/voce-sabe-o-que-e-leitmotiv. Acesso em 8 jun 2020.