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Candida Magalhães – Migrante e Travessias

 

Duplamente migrante do tempo e do espaço, mudança da moradia rural para a cidade pequena, já se registra uma diferença crucial nos modos de vestir, nas escolas com carteiras individuais com cadeiras com encosto para as costas, em contraste com os bancos de madeira longos sem encostos e mesas para apoiar os braços durante a escrita, nas escolas rurais.

As moradias próximas umas das outras, muitas ruas e vários comércios de utensílios, comidas, roupas, serviços médicos e dentários, aparelhos de TV branco e preto nas casas de pessoas mais ricas e telefones fixos que era um artigo muito caro e inacessível a um grande número de famílias.

O deslocamento dessa infância de brinquedos inventados onde a imaginação e a criatividade andavam juntas, a ausência de nenhum comprado contribuía para isso. Os balanços pendurados nas arvores substituíam os parques. A brincadeira de roda segurada nas mãos e rodadas intensas substituíam a roda gigante. Passa anel, adivinhação, queima, carimba, cobra cega, esconde-esconde.

Nunca existiu papai Noel, mas o pai ia a cidade mais próxima e comprava tecido para roupas novas para meninos e meninas e esposa, e a medida era feita num cordão, tudo para ser usado em ocasiões especiais, festas e passeios. Nesse período também entrava um item desconhecido para saborear – o pão de trigo, porque diariamente comia-se cuscuz, tapioca, batata doce, macaxeira e inhame.

As comidas eram feitas: bolo de milho, pão de ló, pão recife, bolo de mandioca. Delícias da cozinha sertaneja. Era época de soltar balão. Seu Chico Luís, o mestre responsável da confecção dos balões coloridos, que ganhavam o céu do sertão. Tudo isso aguçava a imaginação das crianças que desejavam passear no céu sentados nos balões vendo as estrelas e os planetas. Que grandes mestres! Dezim encantava com as histórias do seu imaginário o teatro de boneco que era chamado de Babau. Criava histórias de coronel, homem valente, namoro e amores impossíveis. Verdadeiro representante da cultura popular com sabedoria extraída do cotidiano e a memorização, a estória oral em exercício pleno. Ele também era responsável pela gastronomia da casa, em parceria com a dona da casa, mãe das crianças, sua patroa. Não gostava do trabalho na roça, só queria saber do trabalho doméstico.

A filha mais velha sonhava com outros lugares onde houvesse trabalho e estudo e ganhos. Foi nesse itinerário que seguiu quando surgiu a oportunidade de uma casa na cidade que precisava de uma pessoa que cuidasse de duas crianças, arrumasse a casa e lavasse os pratos. Em troca dispunha de horário para estudar. Cursou a quinta série, mas teve que voltar para a roça com a seca de 1958 que abalou a vida da família. Morte de animais, plantações esturricadas por falta das chuvas, os irmãos mais velhos trabalhando nas Frentes de Serviços do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas no Nordeste (DNOCS). Em pagamento desse trabalho recebiam cestas básicas compostas de arroz, feijão, milho, açúcar e café. Um cenário de clima hostil, rudez, miséria e sofrimento.

Com as chuvas no ano 60, a família migrou para a cidade vizinha para os filhos estudarem e trabalhar, já que a vida na roça se tornava difícil com a queda de produção de produtos agrícolas, período que teve início o uso de defensivos químicos, adubos, uso de maquinas e incentivo à produção de cana de açúcar e agropecuária. O sistema de moradores que tinham casa e terra para pequeno plantio entra em declínio. Muitos trabalhadores rurais migraram do campo para a cidade. Esse tempo demarca o inchaço das cidades e o surgimento de problemas sanitários como esgotos a céu aberto, água potável e a proliferação de favelas.

Finalmente, a metrópole, lugar agitado, muito grande, com prédios e casas e um trânsito assustador de carros, ônibus, trens e metrô. A explosão do telefone celular populariza o consumo e não há quem não compre um variando só a tecnologia, avançada e de última geração e outra que não é tão avançada, mas que permite a comunicação entre as pessoas. O que se vê é a massificação da telefonia móvel.

A vida na cidade grande sofre profunda mudança quando a moradia é vertical, distante do chão e com vizinhança de portas fechadas, resumindo-se a cumprimentos formais quando se cruzam nos corredores, escadas ou elevador. É um distanciamento que no início assusta e emocionalmente agride.

Um novo ciclo da vida tem início em clima de saudades das paisagens mais tranquilas, vizinhança amiga e solidária, um retrato embaçado no tempo e nos novos caminhos que se apresentam, traçando um paralelo de uma viagem cujo veículo ganha velocidade aumentando assustadoramente a distância.

 

 

Esta imagem é uma foto tirada do quadro da parede da casa de meus sogros.  O quadro está assinado com o nome de Inês T. O quadro da artista foi comprado na feira de artesanato da República, em São Paulo, na década de 70. Tentei localizar a artista nas redes sociais, porém sem êxito. Aprecio muito sua arte. 

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