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Agostinha Vieira de Mello uma monja-poeta

Durante minha morada em João Pessoa, eu tive o privilégio de conhecer e desfrutrar momentos gratificantes com Agostinha Vieira de Mello, uma monja beneditina, bíblista e poeta. Uma bela monja-amiga e inspiração para nós Chimalmans – um grupo de mulheres estudantes de teologia (eco)feminista e de vivência da espiritualidade. Agostinha era uma monja especial, admirável que nos cativava com seu jeito amoroso de ser, pela escuta e por sua capacidade de abertura para as mudanças da vida e do mundo.

Para falar sobre Agostinha, tivemos a alegria de conversar com Elinaide Alves de Carvalho, Rosemery Marinho da Silva, Roselei Bertoldo e Sandra Raquew Azevedo, que conviveram com ela na sua passagem pela Terra. Cada uma, a partir de suas vivências e memórias afetivas destaca aspectos da vida e escritas de Agostinha. 

Um pouco da biografia

A Teóloga Elinaide Alves de Carvalho, conta-nos um pouco sobre as andanças de Agostinha.

Nasceu em 07.10.1926, na cidade de Natal/RN, batizada Marion Vieira de Mello. Era filha de Rivaldo Vieira de Mello e Maria Bilro Vieira de Mello, que também, tiveram mais dois filhos.

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Aos vinte e poucos anos, Marion (Agostinha) Vieira de Mello inicia a experiência religiosa na Ordem de São Bento no Rio de Janeiro, tendo passado também pelos mosteiros em São Paulo, Belo Horizonte e sua chegada no Nordeste foi na Abadia de Nossa Senhora dos Monte, em Olinda. O nome “Agostinha” é o nome religioso, que ela recebeu quando fez a opção pela vida religiosa.

Na década de 1970, Agostinha e mais duas irmãs/monjas pediram licença a Abadia beneditina, o mosteiro de São Bento para viverem em comunidades inseridas. A convite do Bispo Dom José Maria Pires, elas foram morar em João Pessoa, no bairro popular, Mandacaru.

Em Mandacaru, elas fundaram a comunidade de fraternidade “Deus Conosco”. Agostinha e Maria Leticia Penido, sua irmã de vida religiosa, viveram entre os mais pobres e levaram uma vida simples dedicada as pessoas da comunidade, atuação pastoral, contribuindo com os espaços de estudos bíblicos, teológicos e de espiritualidade.

Agostinha foi uma das fundadoras do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI) e nos estudos bíblicos reinterpretava a palavra sagrada com seu olhar crítico e questionador. Na releitura dos textos biblicos, tinha uma percepçao fina para enxergar e dar visibilidade as vozes marginalizadas e silenciadas pelos sistemas de dominação e opressão presente nas escrituras sagradas, nas igrejas e na sociedade.

Nos encontros com as Chimalmans – grupo de mulheres da teologia que ela também fazia parte – refletíamos juntas, a partir de uma perspectiva (eco)feminista sobre as injustiças e as mazelas das desigualdades sociais e opressões que acercam a vida de nós mulheres, das populações pobres e desamparadas.  

Agostinha gostava de escrever e traduzia suas inquietações, reflexões, indignações e amorosidade com as pessoas, com Deus e a natureza em escritas-poéticas.

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Parteira de amores​

… Nas águas dos meus 75 anos vou navegando.
Até hoje sou de muitos amores e de varios divórcios…
Sou muito exigente nos noivados.
Por osso não marquei no calendário
um primeiríssimo amor.
Fui possuindo varios primeiros amores
Conforme o ângulo da minha respiração, aspiração
E do pó do chão que piso.

Bem nos começos da minha idade média
Minhas buscas estavam em pico:
necessitadas de parceria para as visões se clareando,
de convivência para certas lutas,
sedentas e famintas de justiça e de liberdade,
carentes de espaço lúdico para a brincadeira, a beleza e a boemia,
roxas pra mudanças nas desarrumações sócio-políticas.

Dois moços altos me deram uma ajuda: o CEBI.
Marcelo Barros apontando
Carlos Mesters me acolhendo.
Caí no berço do CEBI cercada por todos os lados
pela baía de Angra dos Reis
com a palavra na Vida e a Vida na Palavra.

Pude aí buscar, encontrar, perder, reencontrar,
concordar, discordar, escrever, apagar,
rezar, blasfemar
lidar com diferentes amores
tocar de mais perto os pobres
misturar tudo com jeito e entranhas de mulher…

Sempre fui devota do Emanuel.
O Deus conosco sempre esteve presente
Antes, durante e depois dos meus partos.
O CEBI (com tantas e tantos!) foi boa parteira.
Aí peguei mais tarimba
para desconstruir a competição que aborta a paixão
e nos impede de brincar com Deus
que é menina e é menino!

João Pessoa, 3.07. 2002

 

A relaçao com o sagrado e a vida cotidiana​

O espaço da casa é sempre um lugar que revela um pouco quem são as pessoas. Entrar por aquela porta era abrir o nosso coração, às vezes, para a escuta de Agostinha ou de Maria Leticia. Buscamos nessas duas criaturas-mulheres-divinas, as palavras sábias, nas horas de nossas dores, angústias e indecisões da vida. Uma palavra amiga, um conselho, ou simplesmente uma reza ou um abraço, nos encorajavam a seguir em frente em nossas buscas e a nos avivar diante dos desafios da vida. O jardim, o orquidário, os objetos da casa, nos seus devidos lugares, tudo revelava um pouco da vida e nos levava a dimensão da espiritualidade. A casa era um espaço do sagrado, como bem a compreende a filósofa e teóloga Rosemary Marinho:

“O sagrado para Agostinha e Leticia estava na vida, de como nos colocamos e nos posicionamos diante da vida. A casa da comunidade Deus Conosco era uma casa simbólica e acolhedora que recebia todas as pessoas.
Os momentos orantes na casa, eram momentos de mergulho no poço. Um poço de águas abundantes e ao mesmo tempo repleto das contradições da vida. Rezar na casa de Agostinha, não era se apartar do mundo, não era achar que o mundo era o lugar do pecado, ao contrário, era mergulhar no mundo. Era enxergar nesse mundo de tantas dores e alegrias, a presença de Deus. A reza era muito rica, mas era ainda mais rica a mesa, o comer juntas! A partilha da palavra e do pão”.

Alargar as tendas​

Alargar as tendas
Esticar cada parte da tenda
Acampar no chão
Arejar as tendas
Alargar a vista
Deixar abrir o coração
(sem desprezar o pensar)

Incluir
Fazendo compaixão
Alargar a vida
Não limitar a força
Penetrar o novo
Escutar o ventre pular
Permitir o novo nascer!

Nossa Esperança

Neste chão nordestino
mesmo a esperança é Severina
não tem ares de heroína

é semente-inquilina
desconfiada de despejos
tarimbada em desejos;

é resistência traquina
forrozeira-dançarina
que a ti da bem querenças
fertiliza nascenças.

A esperança nordestina
é lamparina

A relação com a dimensão da corporalidade

No imaginário de muitas pessoas, as freiras/monjas vivem a negação da dimensão da corporalidade. Agostinha era uma monja, que por opção não usava mais “o hábito” – a vestimenta tradicional da vida religiosa. Vestia-se como uma mulher simples. A dimensão do corpo e da sexualidade eram chaves de leituras e de interpretação dos textos bíblicos e teológicos. Lembro-me que nos encontros com as Chimalmans, a qual também fazia parte, refletíamos sobre os corpos e a sexualidade de nós mulheres; sobre as marcas de opressões patriarcais e as violências que acercavam nossas vidas, a exploração que recai sobre nossos corpos e sobre a natureza, a mãe Terra. Refletiamos também sobre os desejos e as transformações de nossos corpos em suas diferentes fases da vida. Agostinha, tecia uma crítica ao termo “melhor idade”, porque reconhecia as mazelas da velhice no corpo, os limites do corpo causado pelas marcas do tempo.

Para a teóloga Roselei Bertoldo “Agostinha era uma religiosa, monja que vivia de forma muito livre. Ela transmitia uma liberdade interior e exterior. Ela foi uma grande inspiração para nós mulheres jovens religiosas, no sentido de que o corpo é meu e o meu jeito de ser, é de minha responsabilidade. Em casa ela estava sempre lindíssima, arrumada, maquiada e perfumada. Ela expressava a dimensão do feminino e da mulher feminista.
Agostinha saiu da clausura do convento para viver a clausura do mundo, das causas sociais, levando a palavra bíblica para as comunidades mais pobres, principalmente para as mulheres. Guardo comigo o seu sorriso, a delicaleza e seus afetos”.

Agostinha nos seduzia com sua palavra flecha, reflexões questionadoras, encantos, cheiros e abraços de bem querer!

Sopros em três atos

A primeira vez,
Fui eu, já sem sopro
Na praia nua.

Você chegou
Emprestou-me sua respiração
Boca a boca.
Levantei-me!

A segunda vez
Foi você, quase morto
De tanta divindade
Na praia das leis.

Inclinei-me, visitei sua boca,
reconquistei sua carne
juntos fomos tomar um sorvete.

A terceira vez fomos nós
na praia de uma esquina de rua.
nos juntamos corpo a corpo.

Aí foi beijo mesmo
Sem nenhum mais, sem nenhum menos.

Eu me perdi, você também
sem planos de salvação,
foi só pra amar, amar e amar…

Sabemos lá onde, este Vento
Vai nos levar?!

Praia Formosa / Cabedelo, 18.08.2000

Amorosa Espera

(A Dorothy Stang)

Já estou te esperando, sim,
numa espera esperançosa de esperança.
Bentevi, Dorothy!
Não sei como vais brotar.

Como flor ? pahneira ? pé de fruta ?
Roçado verde com todos os tons de verde ?
Pé de erva de coragem ?

Flor de vermelho tão rubro
que se faz sangue e remédio pras nossas anemias ?

Ou retornarás como canção:
”uma sabiá voltando pro seu lugar”?

Eu só sei que confio na tua irmã
“e ponho a força da fé”
nessa moça idosa que à beira de teu berço de viagem
garantiu: ”Dorothy, teu corpo não vai ser enterrado
teu corpo vai ser semeado”!

Creio nessa profecia!
Pelo que vias acontecer em Anapu
Com gente vivente e com o eco-ambiente
vias e amavas com mania:
a terra e quem nela vivia
entregando energia
fazendo enxertias pras melhorias.

(Ô Dorothy, o que as minorias vão conseguir ?)

Não esqueço teus avisos de ameaçada
e a importância maior que davas
”aos cabras e às cabras marcados (as) para morrer”
no anonimato

Não esqueço teus dramas
mas não quero estancar
neles.

Te quero
missionária-passarinha.

Ando por tuas paixões
que é das águas, dos pássaros, das árvores, dos chãos
e dos Zés e das Marias pequenininhas

(…)

 

Relação com a Arte, a escrita e literatura

Tatuagem

“Quero ficar no teu corpo feito tatuagem

Que é pra te dar coragem
Pra seguir viagem
(…)
Quero brincar no teu corpo feito bailarina
Que logo se alucina
Salta e te ilumina
Quando a noite vem
E nos músculos exaustos do teu braço
Repousar frouxa, murcha, farta
(…)
Chico Buarque
 

Para a escritora Sandra Raquew de Azevedo, Agostinha era um arquétipo de uma mulher sábia. Eu sempre tive muita curisosidade de entender a poesia de Agostinha, porque ela era uma mulher da poesia. Ela tinha muito amor e entrega a poesia. Ela era uma leitora voraz. A vida noturna dela era entre a leitura e a escrita. Foi através da poesia que eu fui tendo um maior contato com a subjetividade de Agostinha. Para mim, ela era um mistério. A dimensão da poesia de Agostinha estava no corpo, na singularidade dela de ser. Também estava na casa-poema.  A casa era povoada de narrativas do Nordeste, do nosso país e do mundo. O aspecto da literatura reflete também na força das palavras,  na casa poema. No cotidiano-poema, ela incluia a linguagem da comunidade. Nas suas escritas, ela tecia a construção de justiça. No compromisso com as leituras Bíblica ela falava em uma linguagem do povo de Mandacaru.

A poesia dela está dentro da casa – da Casa-Poema! A casa era povoada pelas raízes do Nordeste brasileiro. 

No convívio com Agostinha fui compreendendo que no quarto, nas suas noites existia um mundo que era tecido. Uma “abelha fazendo mel”, tecendo palavras. Eu queria ser uma arqueóloga dos poemas de Agostinha. Eu sabia que naquele quarto, noites, de um mundo íntimo era onde a abelha estava fazendo o mel, tecendo aquelas palavras. Sei que aquelas palavras tinham e tem emoções, subjetividades. Existem muito do ser e da história de Agostinha na construção de suas palavras, de seu olhar crítico e bem-humorado. Eu me encontro e me emociono com essa mulher que se constrói em poemas. Ela escreveu poemas dedicados as pessoas, à Ivone Gebara, e ao CEBI, nestes textos, vejo essa mulher de encantos. Uma mulher que era apaixonada pela música e pelo cinema. Muitas narrativas estão de forma intertextual na poesia de Agostinha. E também de uma escrita profética. Ela imprime um lugar profético dentro da literatura. É o lugar de amor, da justiça, da paz e de outras formas de simbolizar e narrar a espiritualidade. Os poemas falam de vida e de ressurreição, de um corpo repleto de sentidos e de sentido de transgressão também pela palavra.

Eu vejo essa mulher que tece a vida de diferentes formas dentro dessa integralidade do ser.

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A Bengala e os Sonhos

Tanto tempo usei e gastei minhas cartilagens
que hoje preciso usar bengala.
O uso não me encabula nem abala
ao contrário, embala a isegurança dos meus passos.
E mais: me sinto um pouco Carlito.
O que me deixa alumbrada
e todinha atiçada.
Vou indo com mil fantasias:
de criançaa, de palhaça, de ingênua, de esperta,
de humorista, de dramática, de trapezista,
de florista vidente,
de revolucionária, de sonhadora,
de crítica dos tempos modernos (e antigos)
acendedora de luzes da ribalta…
Não sei fazer as piruetas que ela fazia
mas vou percebendo com mais fineza
os malabarismos do poder e do não poder.
Me sinto Chaplin, Carlita,
repentista, pra lá de artista.
…Cada vez que apoio minha bengala no chão ouço o finzinho daquela canção:
“…e o mundo vai ver uma flor
brotar do impossível chão!…”

Poesia dedicada a amiga Gabriela, a “Carlista, bengala e ajuda” em todas as horas”
Agostinha 30.01.2007

A hora do Adeus!

Em 01 de setembro de 2016, o coraçao da mulher, da monja-poeta parou de bater. Foi chegada a sua hora de partir de Mandacaru, da comunidade “Deus conosco”,  como diz Ivone Gebara, ficamos “orfãos de sua presença”.

Agostinha querida, feliz aniversário…
De mansinho você saiu de seu Mosteiro plantado no meio
Nem esperou a festa de seus 90 anos…
Nem avisou que estava para partir para a grande viagem…

Ficamos nós órfãs de sua presença…

Nós que te amamos queremos hoje dar graças a Vida por sua
frutuosa e tão cheia de saber…
No céu dos nossos corações você continua brilhando como
aconchegante.
Assim era você… Braços sempre abertos para a acolhida
muitas histórias, boca repleta de palavras de animo e consolo
mostrando sua paixão e seu amor cheio de amores…

Ficamos nós órfãs de sua presença…

À Deus poetisa querida, mística e profetisa…
À Deus amiga de copos e cruzes…
À Deus encanto ou encantinho como você me chamava
Você vive em terra nordestina e nos corações que
Feliz aniversario.

Da velha amiga,

Ivone Gebara

São Paulo, 07.10.2016

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Em nome do blog Terra Literaria agradecemos todas convidadas pelas memórias compartilhadas de Agostinha Vieira de Mello.

Neste espaço, as amigas Chimalmans, do qual faço parte, prestam a sua homenagem a irmã Agostinha in memoriam pela sabedoria, amorosidade e convivência juntas ao longo de muitos anos! 

Nossos agradecimentos especiais, a Maria José Rodrigues Ferreira (Zuza), irmã Gabrielle Kieran, a Elinaide Alves de Carvalho, Sandra Raquew de Azevedo, a Ivone Gebara, Pe. Marcelo Barros, Ricardo Alessio, Malú Alessio, amigas e amigos do CEBI Nacional e de João Pessoa, a Comunidade Deus Conosco, vizinhas e a todas as pessoas envolvidas nos cuidados dessas preciosidades que foram Agostinha Vieira de Mello e Maria Leticia Penido.

Todas as fotos utilizadas no post perteceram ao acervo pessoal de Agostinha Vieira de Melo, após sua morte foram doadas a amiga Sandra Raquew e outras amigas.
Na ultima foto estão presentes, do lado de Agostinha, as amigas do grupo Chimalmans:
Maria das Graças Bezerra, Roselei Bertoldo, Rosemery Marinho, Anadilza Maria Paiva, Elinaide Alves de Carvalho, Sandra Raquew de Azevedo e Malu Oliveira.

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