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A veste dos melões

Sábado era dia de feira livre no Jardim Capela. Implorei a mãe para me levar junto. Há dias que sonhava em comer pastéis e tomar caldo de cana na barraca do Japonês. Pastéis como aqueles… nunca mais provei! Alguns vizinhos do bairro vendiam seus produtos feitos em casa ou comprados (verduras, legumes, cereais, laticínios) mais baratos no Ceasa e os vendiam com preços mais altos. Na feira de tudo tinha, até roupas íntimas para todos os gêneros, calçados para todos os pés, perfume Toque de amor… gente que engraxava sapato e pessoas que vendiam tecidos de todas as cores.

Divertia-me muito na feira. Ciganas vestidas com lenços de lantejoulas na cabeça, saias rodadas coloridas e compridas que se acercavam das mulheres, oferencendo a leitura das mãos. Liam a mão em troca de uns trocadinhos e eu, curiosa, mesmo a contragosto de mãe, me aproximei de uma velha cigana, que lia a mão de uma senhora de meia idade. Lia as linhas de sua mão, buscando desvendar as diversas mensagens do destino da outra mulher. Eu querendo saber o que se passava, esticava meus ouvidos … queria ouvir mais e mais, mas mãe logo me puxou pelo braço, morria de medo delas:

— Isso é mentira, menina! Quem sabe o nosso destino é só Deus! — resmungou mãe com sua incredubilidade na arte das ciganas.

Mais adiante, vi uma roda de feirantes com as repentistas com suas violas, uma desafiando a outra, em um desafio de palavras bonitas e animadas. Entre um intervalo e outro da viola, uma jovem tentava vender seus livretos de cordéis. Com uma expressividade de prender nossos ouvidos, rasgava seus versos com rimas de uma história que fazia muita gente chorar. Era bonito de se escutar:

— Um dia quero ser artista como esta gente — cochichei no ouvido de mãe.

Passavámos a manhã quase toda na feira e, de barraca em barraca, ouvíamos os vendedores gritarem: “Moça bonita não paga, mas também não leva”. Eu achava engraçado e ria muito. Às vezes, caía na graça de algum vendedor e ganhava uma maçã ou uma maria-mole. Maria-mole de coco, meu doce preferido. E maria-mole com os mesmos sabores que mãe fazia para os dias de aniversários não existia em nenhum mercadinho da vila que moravámos.

Entre uma barraca e outra, com os olhos arregalados e apalpando as mercadorias, mãe resmugava no pé do meu ouvido ou, em voz alta mesmo:

— Meu Deus, que carestia é esta? Os preços estão pela hora da morte!

E, assim, começava a peregrinação por mercadorias mais baratas. Ela colocava a vergonha dentro da sacola e, a cada barraca, pechinchava os preços das verduras, do feijão e da farinha de mandioca, coisas que não podiam faltar em casa. Algumas vezes, ela pechinchava tanto que o dinheiro se esticava e ela comprava a mistura do final de semana, um pedaço de carne com osso, que era mais barato. Mãe tinha uma lábia muito boa, sabia conversar com os vendedores que quase sempre se apiedavam dela e baixavam os preços de uma mercadoria ou outra. Eu via a alegria de mãe quando ela olhava para a sacola que aos poucos ganhava volume.

E eu, com o meu corpo desajeitado de adolescente, queria, necessitava de outras coisas. Coisas de meninas. Meus peitos cresciam feito melões. Aumentavam tanto que tinha vergonha de me olhar em um pedaço de espelho da penteadeira do meu quarto. Sentia-me desconfortável em ver a imagem de um corpo em que eu não me encontrava dentro dele. Minhas amigas da mesma geração já usavam sutiãs e riam dos meus melões, que criavam volume visivelmente dentro da roupa. Quando eu corria, às vezes, segurava-os com as mãos para não balaçarem tanto, além de pesarem muito.

Então, tomei coragem e disse:

— Mãe eu quero um sutiã! Vamos passar na barraca de Dona Santina, ela vende sutiãs de todos os tamanhos e cores — insisti.

— Para que você quer um sutiã, Cidinha? Sutiãs são pra mocinhas — disse mãe, enervada, como se eu não tivesse aquele corpo esquisito de uma menina de minha idade: um corpo que se metamorfoseava com pelos nas partes intímas, o sangue que escorria por entre as pernas a cada mês, os hormônios à flor da pele… mas ela nem notara, tinha outras preocupações.

Chateada com a falta de olhos de mãe para mim, nessa hora tive vontade, ali mesmo, no meio da feira, de levantar a minha blusa branca e mostrar-lhe meus seios-melões um tanto exagerados para uma adolescente de 12 anos. Então, fui à barraca de Dona Santina. Olhei para os sutiãs pendurados e, enquanto ela atendia outra mulher, eu peguei o sutiã pink sobre a banca e o escondi debaixo de minha camiseta. Disfarcei com meu sorriso de pura inocência, fui atrás de mãe na barraca dos melões, melancias, caquis… coloquei o sutiã dentro da bolsa sem que ela notasse. Assim que cheguei em casa, tratei logo de tirá-lo da sacola e o escondi debaixo do colchão da minha cama.

No final da tarde do mesmo dia, Dona Santina, que morava a duas ruas de nossa casa, bateu na nossa porta: — Boa tarde, Margarida, posso entrar?

— Entre, entre! Quer um copo com água, um café com pedaço de bolo de fubá? — disse mãe, convidando-a para se sentar na velha poltrona da sala.

Do meu quarto, escutei a voz de Dona Santina, me tremi toda! E, em poucos minutos, ouvi minha mãe aos berros:

— Aparecida! Aparecida, venha aqui agora!

Quando cheguei na sala, com minhas bochechas rosadas e as pernas tremendo, Dona Santina, me olhando sem graça disse: — Cidinha, você pegou de minha barraca um sutiã pink, tamanho M. Por que você não me disse que queria um sutiã?

Nesta hora, eu me senti como se estivesse confessando os meus pecados para o padre José. E, diante da santidade que havia na sala, dos olhos de mãe e de dona Santina, com a voz entrecortada, e com muita vergonha, confessei o delito: — Eu roubei um sutiã pink! Meus seios de tamanho de melões estão explodindo dentro no meu corpo, eu preciso de um sutiã. Olhem, olhem para meu corpo, vocês não veem?

Mãe estava enfurecida comigo, e não sabia como disfarçar. Pegou, o cinturão para me bater: — Somos pobres, mas não ladras. — Ela se conteve. — Vá buscar o sutiã e devolva agora mesmo a Dona Santina. Constrangida, mãe pediu desculpas repetidas vezes, implorando-lhe que não contasse o acontecido para a vizinhança.

Peguei o sutiã e entreguei a Dona Santina, que me olhava com a compaixão dos olhos de Nossa Senhora Aparecida: — Não precisa me devolver filha, o sutiã agora é seu! Mas prometa a sua mãe que nunca mais vai fazer isso. Promete?

— Sim, prometo, prometo. Nunca mais!

E, para reparar o dano, eu passei a trabalhar com Dona Santina na fabricação das roupas íntimas.

Anos depois, descobri que o melhor mesmo é ficar sem sutiã.

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