Search
Close this search box.

A colonização da floresta e dos territórios indígenas

A temática sobre povos indígenas na Amazônia no romance “Am Ende des Regenwaldes” é introduzida no Podcast, seguido por dois artigos: o primeiro foi “Territorio, corpos e espíritos“.

O romance nos ajuda a refletir sobre a dominação colonialista e capitalista que vem ocorrendo em tempos atuais nos territórios indígenas. Embora, o contexto da história se situe no Equador, as questões abordadas no romance estão conectadas com a realidade de outros países da América Latina.

Toda região vem sendo ameaçada pelos interesses das grandes empresas capitalistas, nacionais e internacionais. Em nome de uma política desenvolvimentista econômica, são feitas várias invasões, usurpação e exploração das terras indígenas e da floresta amazônica. As vidas dos povos indígenas e toda biodiversidade estão ameaçadas. Muitos povos indígenas estão sendo assassinados e/ou expulsos de seus territórios. Isto vem ocorrendo no Brasil, na Colômbia, no Equador e em outras partes do mundo. Sem dúvida, as florestas estão na mira dos interesses das grandes indústrias capitalistas, dos latifundiários e madeireiros que desmatam grandes partes das florestas para a monocultura, agropecuária e o agronegócio. Eles não só se apropriam dos recursos naturais da floresta como são agentes da extinção das riquezas naturais (flora, fauna, minérios, medicina) e do extermínio dos povos originários da floresta.

Seguindo o texto literário, a partir das vozes dos personagens indígenas, nos deparamos com relatos de violência e violações dos direitos dos povos da floresta que ocorreram em outros tempos da história e que continuam acontecendo na atualidade de forma sofisticada. A partir do capítulo três surgem os primeiros indícios de colonização.

O personagem indígena Popoké, o pajé do povo Malaké e o avô das meninas Daboka e Loca, guia todo o grupo pelos caminhos da floresta, por possuir um profundo conhecimento sobre a natureza. De repente, a caminhada é interrompida pelas marcas da colonização, que vão se revelando pela floresta.

A voz da protagonista chama atenção sobre sinais de destruição da floresta. No caminho, eles sentem um “cheiro estranho, que não pertence à floresta”. Todos ficam imobilizados pelo odor forte que os deixa ao mesmo tempo “assustados e curiosos”. De acordo com a protagonista, o odor faz com que Popoké permaneça por horas emudecido e reflexivo sobre “o que está acontecendo com a floresta” (cap. 2). O cheiro é descrito pela protagonista como “repugnante, que não pertence à floresta” e, com seu coração palpitando, ela constata que ao avançarem na caminhada, cheiro vai ficando mais forte e provoca coceira no corpo. É quente e repulsivo. O fedor é insuportável. A respiração do ar pressiona os nossos pulmões, queima nossos olhos. Nós vemos o impossível na nossa frente” (cap. 2).

De acordo com estudiosas(os) e ativistas que atuam na região, este odor identificado na Amazônia equatoriana[1], fronteira com Colômbia, vem dos oleodutos que transportam petróleo. Quando se rompem, espalham este veneno, deixando consequências irreparáveis à vida do ecossistema. Tudo se destrói ao seu redor: as águas, a pesca, os cultivos, os animais e afeta danosamente a saúde dos povos indígenas. O petróleo, em algumas comunidades, tem causado câncer em 10% da população. Segundo o jornalista Luís Miguel[2], os incêndios provenientes do petróleo são chamados pelos povos indígenas de mecheros de la muerte, isto é, chamas da morte. Enfatiza ainda Miguel: “o odor que sai deste gás que queima dia e noite impressiona a vista, penetra nos pulmões e em todo corpo, sendo as mulheres as mais afetadas com a contaminação deste produto: câncer de útero e de mama, leucemia, doenças respiratórias, de pele, além de outras”.

Na perspectiva da narradora, o cheiro é percebido justamente no trajeto onde acontece a devastação da floresta:

Exatamente ali. Termina o caminho. Cortado. De uma fita azulada. Tão larga, que ninguém pode pular por cima. Tão longa, que nem vemos o fim nem o começo.  E quando eu viro minha cabeça, eu vejo que essa estranha fita se abrange até o horizonte. A floresta está dividida em dois pedações por este horizonte (cap. 2).

As empresas, com suas imperialistas máquinas, derrubam árvores milenares da floresta para as instalações da exploração de petróleo e minérios. O desmatamento é “tão largo, que ninguém pode pular”, constata Daboka, sinalizando para a gravidade do problema causado pelos “estrangeiros”, que ali estão. Vale ressaltar que, no romance, a palavra “estrangeiros” é utilizada para nomear as empresas transnacionais de petróleo ou mineras, que exploram a floresta e os territórios indígenas.

De acordo com a indígena e ativista Patrícia Gualinga[3], o governo local tem desrespeitado a lei, a constituição e o direito internacional de proteção a selva amazônica equatoriana. Patrícia afirma que “a situação segue sendo ao avanço da fronteira extrativista, concessões nos territórios indígenas, tentativas de explorações de zonas que são imensamente ricas em biodiversidade”. A natureza é explorada a qualquer custo, não há nenhum critério ético e punição dos responsáveis pela degradação, destruição e queimadas, além dos assassinatos dos povos indígenas, principalmente de suas lideranças e ativistas que lutam pelos direitos dos povos da floresta, contrapondo-se ao colonialismo e aos projetos capitalistas. Para os donos do capital, a natureza é vista como um objeto de exploração e de dominação, enfatiza Gualinga.

Seguindo o texto ficcional, o povo Malaké se depara com outra situação estranha na floresta, o que os deixa ainda mais preocupados, inseguros e com medo, como descreve Daboka:

E de repente eu ouvi. Esse barulho. Como se a terra resmungasse e tremesse debaixo dos pés. Um barulho alto. (…) E de repente eu o vi. Essa enorme coisa, que vagarosamente se aproxima. Esse monstro, cuja pele resplandece em um brilho ofuscante. Ele faz a terra tremer e provoca um terrível barulho, que nunca houve. Grita, soluça. Faz “Pschiii” e “frrr” (cap. 3).

O “monstro” a que a protagonista se refere diz respeito às grandes máquinas das empresas que estão destruindo e desmatando a floresta, abrindo estradas e cavando buracos profundos na terra em busca de petróleo e minérios. Máquinas que são manejadas por homens brancos, que em outra época da História, segundo a memória do pajé Popoké, invadiram a floresta e expulsaram os indígenas de seus territórios.

No barulho estrondoso, eu escuto vozes altas. Do lado do monstro caminham esquisitas criaturas. “Isso está enfurecendo o espírito da floresta”, cochichou Malaké. “Não”, murmurou o velho Popoké: “afinal, isso são pessoas” “Pessoas? Essas criaturas, com rostos tão brancos como a Lua? Com esses corpos deformados e a pele mole, que no vento flutuam? Isso são seres humanos?” (cap. 3).

Em consequência disto, desde então, muitas comunidades indígenas passaram a viver isoladas e longe do contato com seres humanos de outras culturas e, por isto, alguns indígenas têm dificuldades de identificar quem são realmente os “estrangeiros” que eles viram na floresta. Os Malakés, ao se depararem com os homens no caminho, ficam impressionados com as características físicas e pela maneira com os quais se comportam e se vestem, como podemos constatar na voz do personagem Malaké: “Ele não está nu. Ele está com a pele coberta” (cap. 3). Na visão deles, os ditos seres humanos não têm nenhum respeito pela Mãe Terra e os habitantes da floresta, porque “eles conversam alto, gritam, sem respeito para o Espírito da Floresta” (cap. 3).

Todos os moradores da floresta sentem o impacto da sua destruição através das máquinas manejadas pelos homens brancos e endinheirados e tentam fugir: “Por onde eles caminham, os pássaros voam, os insetos não se movem. Tudo se desmorona. A floresta tem medo” (cap. 3), constata a narradora. A mata está em perigo e toda a tribo está em pânico com a presença dos “estrangeiros” e com suas atitudes na floresta.

Enquanto os Malokés permanecem escondidos na mata, na perspectiva de entender o rebuliço que os “estrangeiros” fazem com a floresta, o medo e a insegurança crescem no grupo, ao perceberem que estão sendo vigiados por corpos estranhos. Escondida nas sombras das árvores, Daboka observa o comportamento de um homem branco com “olhos inquietos, vagando, vasculhando os arbustos, como se o pensamento o perturbasse, para descobrir, em algum lugar, um animal selvagem proibido (…)”. O homem, ao sentir a presença dos índios na mata “fica em pânico e berra: ‘Alguém está aqui!’ Em um único movimento nos escondemos nas sombras. Nós fugimos!’” (cap. 3).

Daboka e todos seus parentes –, mesmo sem entenderem a linguagem dos “homens estranhos com suas terríveis bestas, cujas armaduras piscam com os raios do sol”, no caso, as máquinas, sentem-se desprotegidos.

Neste momento, Popoké relembra que e a invasão ao território indígena já havia começado havia muito tempo e relembra a história dos seus antepassados:

Quando eu era criança, talvez mesmo jovem como Loca, estranhos entram em nosso território. Eles nos obrigam a deixar os animais da floresta e a segui-los. Eles se autodenominam «de Evangélicos». Eu me lembro agora ainda desses nomes, «os Evangélicos»: Eles diziam, eles chegaram como amigos e nos deram muitos presentes. Seguimo-los juntamente com outros povos até a sua grande aldeia. Todos o escutam fascinados. (…) Nós viemos em um grande número: Tribos amigáveis, tribos inimigas, tribos que nos não conhecemos. Muitos foram levados para a vila violentamente. Mas a maioria deles vieram imediatamente. O encontro deixou-os curiosos. O meu pai e o meu bisavô ficaram impressionados com o grande conhecimento dos homens brancos (cap. 3).

A história rememorada pelo personagem remete à entrada de missionários cristãos nos territórios indígenas, na perspectiva de evangelizá-los e convertê-los ao cristianismo. Eles chegavam com seus costumes (totalmente estranhos à cultura indígena), tradições, equipamentos e ferramentas sofisticadas da cultura branca, cujos objetos eram instrumentos fascinavam os indígenas.

Além disso, a relação com a natureza e com a espiritualidade era totalmente diferente da dos povos da floresta, como relembra Popoké: “A imaginação desses estranhos sobre o mundo era muito distante da nossa. Famílias inteiras começaram a fugir da grande vila. Meu próprio avô disse: ‘nós não deveríamos ficar entre aqueles que não respeitam os espíritos das florestas’” (cap. 3). A visão teocêntrica e ritualística da sociedade branca, assim como sua cultura (tradições e modos de vida), foi imposta a muitos povos indígenas, que não acreditavam em um Deus único e manifestavam sua espiritualidade através da natureza. O contato com os estrangeiros “evangélicos” trouxe consequências graves para os povos indígenas, relembra Popoké com a respiração tomada de emoção:

Mas alguns dias depois houve um grande infortúnio sobre nós, os homens, as mulheres ficaram doentes e as crianças, todos ficaram doentes. Quando nós vimos isso, fugimos para retornar aos nossos acampamentos. Mas a febre que os estrangeiros nos trouxeram nos perseguiu. Nenhuma planta, nenhum pajé poderiam nos salvar, aqueles que tinham a febre, eles morreram por poucos dias (cap. 3).

Os povos indígenas foram contaminados com as doenças transmitidas pelos brancos. As doenças eram desconhecidas e, por isto, eles não conheciam as plantas naturais que os ajudassem a curar as doenças. Os sobreviventes começaram a peregrinar por entre a floresta para se protegerem do contato com a cultura dos brancos e dos perigos que esta relação provocava, conta Popoké:

(…) Quando a desgraça finalmente nos deixou, prometemos uns aos outros: ‘Nunca mais nós queremos falar com estrangeiros’. Fugimos por dias. A floresta ficou pantanosa, os rios se tornaram riachos e o sol não penetrou no dossel das grandes árvores. As sombras nos deram segurança e proteção. Por isso, nós mudamos para outra área. Nos escondemos tão profundo que estávamos convencidos de que nunca mais veríamos os estrangeiros. Eu era um garotinho, então. Como eu cresci, eu esqueci desta história. Eu nunca teria pensado que eles nos alcançariam… (cap . 4).

Os relatos acima mostram visivelmente como os sistemas capitalista e colonialista estão fortemente articulados em torno da dominação e exploração da vida e de tudo que a natureza oferece para manutenção do planeta e da humanidade. Esses sistemas, na atualidade, chegam com sua força tecnológica e suas armas destruidoras. Novamente a vida dos povos da floresta está ameaçada e em perigo. Se em outros tempos o povo conseguiu se preservar, fugindo para as profundezas da floresta, em tempos atuais, os indígenas querem permanecer em suas terras.

[1] Matéria “Un pagaguas verde”, de Eva Fernandez (jornalista), disponível em https://www.alfayomega.es/186603/un-paraguas-verde. Acesso em: 26 fev. 2020.

[2] Matéria “Oro Negro, arterias de muerte en el corazón de la Amazonía”, de Luís Miguel Modino. Disponível em: https://www.religiondigital.org/luis_miguel_modino-_misionero_en_brasil/Oro-arterias-muerte-corazon-Amazonia_7_2159254057.html. Acesso em: 26 fev. 2020

[3]Entrevista concedida a Luís Miguel, disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/591101-a-contribuicao-fundamental-dos-povos-indigenas-para-a-humanidade-e-uma-nova-forma-de-relacionamento-com-a-natureza-entrevista-com-patricia-gualinga. Acesso em: 26 fev.2020.

 

Foto: Sebastien Goldberg

contato